O Ladrão de Faces

Você, que me conhece há mais de cinco anos, deve estar se perguntando: como esse cara veio parar aqui? Pois é... Eu, no seu lugar, estaria pensando o mesmo. Mas enfim, vou contar-lhe a história completa e de forma resumida, embora espere que, como muitos outros fizeram, você também duvide da minha palavra.

Pois bem, tudo começou quinta-feira passada. Era somente mais um dia comum para mim (ou pelo menos era o que eu pensava), com a manjada e velha rotina viciosa: faculdade, trabalho, casa e cama. Todavia, quando eu voltava do emprego, comecei a ter aquela sensação angustiante de estar sendo seguido, entende? Pois é, acho que todo mundo já sentiu algo parecido. Mas comigo não foi só uma simples sensação, foi real.

Você sabe que o lugar onde eu trabalho é bem próximo a minha residência, há somente dois quarteirões e, que como de costume, venho a pé. Comecei a minha caminhada rumo ao lar. No meu pensamento não havia outra coisa a não ser o desejo de dormir para que no outro dia eu pudesse estar com as energias renovadas e voltar ao meu ciclo de vida. Pluguei meus fones de ouvido da Beats no meu Iphone 5 - que foi caríssimo por sinal – e, embalado pelo som do Bob Marley e o seu reggae relaxante, fiz o meu trecho de retorno.

Já estava na metade do caminho quando notei algo estranho: No meio fio da calçada onde geralmente ficam os mendigos, havia um senhor, já de certa idade, sentado. Ao lado dele tinha um saco tão cheio, mas tão cheio, que dava a impressão de não caber mais nada. Parecia estar abarrotado de máscaras. Mesmo não tendo observado direito, achei aquilo muito esquisito... Então, nem pensei duas vezes e tratei logo de tirar meus auriculares e bloquear meu celular para que assim, caso ele fosse me assaltar, meu telefone ficasse inutilizável, já que ele não saberia a senha.

Nesse momento, lembrei-me do conselho que minha mãe me ensinou quando eu fui sair de casa pela primeira vez: “Filho, se vir alguém estranho, com cara de bandido, sorria e cumprimente-o. Pode ser que, assim, este não lhe assalte por você ser boa gente”. E o fiz. Sorridente por fora e receoso por dentro, olhei para o rosto do senhor e disse-lhe: boa noite! Mas ai que me espantei: ao olhar na sua face, percebi algo diferente. Ele não tinha feições, nariz, boca ou qualquer coisa que um humano comum teria na parte da frente da cabeça. Sua cara era uma superfície lisa, quadrada e sem delineamentos. Era como um espelho de vidro, que me refletia, e fazia com que esse reflexo reverberasse por todo o meu ambiente, interno e externo.

Nessa hora, minhas pernas estavam trêmulas o suficiente para dançar o “kuduro” sem muito esforço. Creio que por me ver em tal situação patética, ele disse: “Não temas rapaz! Estou aqui para ajudar-lhe, para fazer sentir-se bem”. Ao ouvi-lo, arrepiei-me. Sua voz era branda, mas penetrante; rígida, contudo doce e angelical. Era o som mais paradoxal que eu já havia ouvido em toda minha existência. Agora sim, de vez, eu estava paralisado.

No meu estado estático, imóvel, ele calou-se, se aproximou, tocou meu rosto e, em um sopapo, arrancou minha face, deixando-me com o rosto vazio e a mente, literalmente, aberta. Você deve estar pensando: “Nossa, que dor!”, mas não foi bem isso que eu senti. Foi nesse instante que, inacreditavelmente, senti a melhor sensação de minha vida... Minhas dúvidas, preocupações, angústias e medos se esvaíram como água que corre para o esgoto. Eu conseguia ouvir, bem sincronizadas, as batidas do meu coração. E era um batuque lindo, que nem o Olodum baiano. Enquanto eu curtia essa corrente avassaladora de emoções, ele me disse: “Agora você é uma tela branca de colorir: repinte-se”. Não entendi muito bem o que ele quis dizer com isso, pois ainda estava num estado de euforia que me parecia ser eterno, porém, mesmo assim, concordei. Agradeci ao senhor e segui.

Estando ainda num estopim de felicidade, corri feito louco na rua: joguei fora minha gravata e meu paletó... Tudo que, de certo modo, me acorrentava por fora e, ao mesmo tempo, por dentro e não me deixava viver. Pela primeira vez na minha vida não me importei com leis ou normas, nem com o certo ou com o errado. Pela primeira vez, consegui sentir-me, ser eu. Em um insight, percebi, enfim, que estava livre!

Ao chegar a minha casa, tratei logo de juntar o material necessário à grande reforma em minha vida: as latas de tinta que haviam sobrado da pintura da suíte, dois tubos de cola e uma carrada de sonhos e emoções para grudar em mim, que estavam guardadas na caixinha de mudanças, reprimidas. Refiz-me e hoje estou contente com o que sou. Agora a frase do velhote faz todo sentido para mim.

Então, desde esse dia ajo de modo espontâneo e acredito que por isso estou aqui, porque minha liberdade é perigosa demais. Certas vezes me considero até soberbo, mas afinal eu posso. No fim das contas, nem todo mundo teve a sorte, como eu tive, de ouvir a voz libertadora daquele velhinho que me ajudou a me livrar das correntes que me sufocavam, e disso me gabo com orgulho.

O interessante é que depois do ocorrido, mesmo eu não conseguindo mais o ver fisicamente (acho que ele é ótimo em pique-esconde), eu ainda o escutava todos os dias. Ele sempre me dizia coisas lindas, dava-me dicas de como me colorir, me orientava em algumas tarefas e nunca me deixava na mão. Esporadicamente, ele me dizia coisas meio pesadas, mas afinal ninguém é perfeito. Porém, depois que esses médicos enxeridos começaram a me medicar, ele foi deixando, aos poucos, de se comunicar. Creio que ele não goste que os doutores mexam comigo, por isso está de mal. Deve ser porque, sempre que começo a me divertir, eles teimam em me amarrar, a querer que eu volte a meu estado de escravo do sistema.

Já me decidi: da próxima vez que ele vier tagarelar comigo, vou pedir para que ele se apresente também aos médicos e os transformem em telas para colorir, assim como fez comigo, pois eles parecem penar da mesma doença que eu sofria antes: o TPRC - Transtorno da Personalidade Robótica Cotidiana.

Em suma, isso é tudo. Depois, se você quiser se juntar a mim, poderemos aproveitar essa experiência toda juntos. No momento você pode até estar um pouco assustado pelo convite, mas pense bem e verá como isso tudo pode ser muito legal! E então, topa?