Dona Morte
O meu inimigo íntimo é um elemento feminino travestido de masculino, bem mascarada, a dita cuja, pois sempre aparece com uma capa preta sobre o corpo e uma foice, que há milhões de anos não para de trabalhar um só segundo... Considero-a o maior desafeto do ser humano, ela, a maldosa, a castradora, a destruidora de lares, de casos amorosos, enfim, aquela que foi criada para agir às ocultas, nas sombras, a Sra. Dona Morte.
Por mais necrófobos que sejamos, ela passeia por ai impunemente, sem respeitar o Código Ético da Vida, pois é o nosso oposto: tem uma atração mórbida por cadáveres de crianças, jovens, adultos... A cada dia, a sua lista necrológica aumenta consideravelmente.
Desde menina, ouço histórias desta famigerada que, aliás nunca se mortifica, quando na sua atividade mortífera causa um morticínio.
Vez ou outra, quando criança, escutava um adulto dizer:
- A mulher do barbeiro, a dona Santa teve morte agônica... Como sofreu... As queimaduras espalhadas pelo corpo paralisaram-lhe os rins...
A meninada ouvia por detrás das portas cheia de medo e curiosidade as histórias daquela coisa, cujo nome não se pronunciava diante das crianças.
A Maria Preta que vivia conosco, espécie de babá, mãe, tia, avó, que gostava de tomar marafo pelos botecos era sempre portadora de manchetes sensacionalistas.
Um dia escutamos mortos de medo a trágica notícia trazida pela esbaforida Maria Preta: A esposa do Zé da Venda tivera morte matada. Coitada! Ela vinha vindo do velório da comadre Zeza e teve a infelicidade de topar com um maluco. Cobriu-a de marteladas. Encontraram-na ensanguentada, estirada na calçada, uma judiaria!
Prestava atenção em tudo que ouvia. Ficava curiosa ouvindo os adultos confabularem.
Certa vez, perguntaram à minha avó como seu marido havia morrido, ao que ela respondeu sentenciosa: De morte morrida! Ah! Disse Dona Amália, morte natural. Coitadinha... Enviuvou muito cedo... Vinte e dois anos!
Aquela palavra morte... Tinha medo de perguntar para os adultos o que significava. Eles sempre faziam tanto mistério quando tocavam no assunto. Eu me lembro claramente: Quando havia algum acontecimento catastrófico ou imoral, vovó dizia: Cuidado, tem gente descalça por aí. Mais tarde fui saber que era gente pequena, inocente.
A Irmã Sagrado Coração vivia vociferando: Você é de morte menina.
Isso ela disse pela primeira vez no dia em que enchi a cadeira dela de espanta brotinho. Quando foi sentar já viu né? Ela tinha um panaro que faria inveja a qualquer popozuda do pedaço. Puxando-me pelas orelhas levou-me de castigo ao quartinho da Caveira Iluminada.
Que humilhação! Toda escola assistindo a cena. Trancaram-me lá... Resisti... Não chorei nem gritei, mas medo? Demais!
Lá estava ela, arrogante, eriçando meus cabelos, acelerando meu ritmo cardíaco. Fechei os olhos, agachei-me num cantinho e falei:
- Dona Morte, prometo que nunca mais coloco espanta brotinho na cadeira da Irmã Sagrado Coração, nunca mais coloco açúcar na sopa das feiras, nem deixo a torneira do banheiro aberta, não rabisco a carteira, Nunca... Nunca... Nunca... Minha seleção de peraltices era grande,mas era bom abreviar, senão ela perdia a paciência de vez. Como a famigerada ficasse calada, cheguei perto da dita cuja. Sem nada para fazer, comecei a desparafusá-la. Cheguei à conclusão: Dona Morte era apenas um monte de ossos sem serventia.
Quando foram me tirar do castigo eu estava dançando com o fêmur da caveira. Foi aí que escutei a Irmã Sagrado Coração dizer com a boca espumando de raiva: Êta pixaim de má morte!
Vez ou outra eu convivia com as peripécias daquela entidade que por onde passava espalhava grande dor e pesar profundo.
Meu pai certa vez chegou mais cedo do trabalho e confidenciou com minha mãe:
- Mariinha, o Atílio acabou de falecer.Coitado!Teve morte súbita... Um infarto do miocárdio... Fatal!
Vi meu pai muito acabrunhado... Dias... Confesso que senti pena dele. A morte do amigo mexera com ele... Doeu...
Só fui entender o pesar de papai, quando meu primo Emival teve morte violenta, num desastre em que seu rosto ficou todo fraturado. Chorei muitos dias e fiquei com muita raiva, mas muita raiva mesmo desta malvada ceifadora de vidas.
Fui crescendo no convívio e no aprendizado da morte e sempre escutei causos e causos daquele ser imaginário da crendice popular.
Todo mundo falava dela e sobre ela.
Na sala de aula a professora dizia: Pára de pensar na morte da bezerra, menina e preste atenção no que estou falando!
Numa ocasião tia Marciana usando o mesmo termo dizia para meu tio Lourival:
- Agora não adianta chorar a morte da bezerra. Parece que ele tinha feito um negócio ruim.
Morte para cá, morte para lá...
A única coisa que sei é que esta monstruosa figura sempre esteve presente no meu cotidiano, destruindo tudo e todos...
Dia destes, sofri uma parada cardíaca e ela apareceu, toda serelepe, certa de que me levaria para o outro lado da vida.
Olhei com sarcasmo para ela e de maneira desafiadora. Olhei para aquele monte de ossos, gargalhando com ironia, tirando o maior sarro na cara cadavérica da madame Dona Morte. Disse com ar vitorioso, mas feliz:
- Há muito já perdi o medo de você. Desde aquele dia no quartinho escuro. Lembra-se?
Disse-lhe de modo prepotente, cheia de empáfia:
- Pretendo viver mais cem anos. Vê se me esquece.
Tratei em seguida de tomar posse novamente do meu corpo. Sabe-se lá?
Tem muito inimigo íntimo e oculto por ai.