Mono no aware
Por mais que goste de receber elogios de todos aqueles que tomam seu tempo para ler meus humildes rabiscos, às vezes penso que meu talento é por eles deveras superestimado: pois sim, gosto de pensar que, desde que tomei para mim o fardo de entreter as massas com minhas quimeras há 13 anos, aperfeiçoei minhas técnicas, minha linguagem, e seja lá quais outros termos os artífices do ofício empreguem – mas ainda não fui capaz de realizar uma de minhas maiores ambições recentes, que é escrever um monumental romance à la Proust sobre minha época e como eu e meus conhecidos nos encaixamos nela – sendo estas crônicas o mero esboço desta grande obra que, talvez, nem chegue a realizar; pois, no fim, sonhar é sempre mais divertido.
Se de fato eu viver o bastante para (ao menos tentar) colocar meus planos em prática, o conto de hoje equivaleria ao episódio da madeleine em meu arremedo proustiano, e é uma pena que tenha que relatar tudo de modo tão cru por ora, mas como haverão de aprender ao fim, mais vale um registro mal acabado do que nenhum registro at all – pois, como já disse um de nossos Grandes, nós passaremos mas as canções hão de ficar.
Há alguns dias, pouco antes do fim de agosto, fui contatado por uma velha amiga, a quem conheci há mais de uma década na Internet – e inclusive acabei constatando a ela que não sei se deveria me sentir orgulhoso ou não por quase todas as minhas boas lembranças envolverem a Internet, num tempo em que era proveitoso ter acesso a ela, ao menos. Era uma amiga muito amada, tanto é que voltamos a nos falar como se nunca tivéssemos nos distanciado, mas isto me levou a uma primeira grande, porém triste, conclusão dentre três que vim a ter numa única semana: a vida segue. Não é algo profundo, e muitos outros exprimiram isto de modo muito melhor que eu, mas é a mais pura verdade – sad, but true. Num dia, temos um amigo ou amiga, e no outro ele desaparece; no começo, a saudade aperta, e achamos que não viveremos sem este amigo, mas com o passar do tempo vamos encontrando outros e, se a saudade não vai embora por completo, é ao menos mitigada. Sempre ouvi aquele velho adágio, “o tempo cura todas as feridas”, mas todas as vezes o acho um tanto quanto inverdadeiro: o tempo apenas passa uma camada de maquiagem por sobre as feridas, enquanto quem as cura de fato é tão somente a Morte, que nos desintegra e nos devolve ao seio da terra.
Não muito tempo depois, saí à caça de algum bico porque, com o passar do tempo, desisti da ideia de sobreviver dos meus escritos, seja lá o quão bons digam que sejam – afinal, se fossem mesmo bons, já estaria recebendo dinheiro por eles. Como perdi o primeiro turno da entrevista, optei por me refugiar na livraria (o que sempre faço) até bater a hora do segundo turno, e quando estava quase na metade do caminho ouço a buzina de um carro; instintivamente viro a cabeça e contemplo um outro rosto do passado, um bom colega dos tempos do Liceu e um dos poucos por quem sentia carinho – valendo ressaltar que foi um dos únicos que não conspirou para fazer da minha vida pior do que já era naquele tempo. Com muita alegria, ele (cujo nome é J…) me ofereceu uma carona, e com mais alegria ainda aceitei – se fosse qualquer outra pessoa daquele tempo, duvido que o olharia na cara. A livraria estava fechada para almoço, então ele me guiou de volta ao lugar onde deveria fazer a entrevista – tanto melhor, já que sobrava mais tempo para conversarmos.
Inevitavelmente falamos sobre nossos outros colegas daquele tempo: uns casaram, outros estavam para casar, um outro se assumiu homossexual (chocando um total de zero pessoas, pensei eu). Ele mesmo também se casou e teve uma filha muito bonita, diga-se de passagem, mas o ponto alto da conversa foi que podemos rir juntos de coisas que, até há alguns anos, me constrangiam. Para a minha tristeza a conversa não foi tão longa quanto gostaria que fosse, mas foi produtiva; ao nos despedirmos, fiquei a pensar com meus botões em outro fato universal que, sob minha pena, perde toda e qualquer profundidade e elegância: nem sempre o tempo traz aquilo que esperamos.
J… pensava em ser piloto de avião; não o foi. Naquele tempo também quis eu ser desenhista, para fracassar belamente em duas ocupações; no fim, vi que uma só já estava de bom tamanho. Aposto que grande parte dos meus colegas também não conseguiu realizar seus sonhos da juventude, mas estão lá conformados com o que puderam arranjar. No fim do dia, “os sonhos, sonhos são”, por mais que tantos gurus motivacionais tentem nos convencer do contrário. Pelo menos, os sonhos seguem sem pagar imposto – esperemos até quando, já que, com o ritmo deste século, não duvido que logo, logo, vão arrumar um modo de monetizar até mesmo os sonhos.
Passei todo o resto daquele dia sem pensar em outra coisa que não o passado, e seguindo para casa comecei a tentar retirar do mais fundo de minha memória como eram meus arredores há 10, 20, 30 anos – obviamente, de muitas coisas já havia esquecido. Tive a derradeira epifania do dia e da semana quando cheguei a uma escola, nos arredores de minha casa, onde estudei por quatro anos de minha infância no começo do século, e de tanto pensar no passado acabei tendo um flashback proustiano quando a contemplei.
Lembrei-me de um dia em que, tendo se encerrado as aulas, esperava por meu pai ir me levar embora. Tinha eu apenas 7 anos, se a memória não me falha. O número de alunos e pais já começava a rarear, e apenas eu estava lá ainda; o horário de saída, se mais uma vez não estou enganado, era às 6 da tarde. Senti tanto medo que, impulsivamente, segui embora para casa sozinho – a uns quatro quarteirões acima. Quando cheguei, transido de lágrimas, perguntei se havia acontecido algo grave a meu pai: acontece que ele tão somente dormira demais e não acordou a tempo de me buscar. Ri de mim mesmo; aquela distância que me parecera tão assustadora há tantos anos é atualmente parte do meu percurso diário sei lá eu desde quando. O mundo ao meu redor mudou e nem percebi – pois estava ocupado meramente existindo no tempo. Fiz um exame mental de todas as pessoas que passaram por minha vida e de todos os lugares que já frequentei, tanto os que ainda existem como os que já não existem, e me recordei de alguém que certa vez me disse:
“Existem coisas das quais nos esquecemos, e existem coisas das quais não nos esquecemos, nunca – das duas, não sei qual é a mais triste.”
Também eu não sei como responder a essa assertiva. Tais são as lágrimas das coisas…!
(São Carlos, 14 de setembro de 2023)