O DIA EM QUE UMA PARTIDA DE FUTEBOL LIBERTOU UM HOMEM
Mineirão, 5 de novembro de 2014. Havia um embate entre Atlético Mineiro e Flamengo do RJ. Fulano atleticano estava em casa ao lado da mulher flamenguista. Ele não tinha intenção de ver o jogo. Primeiro porque ele não gosta da TV Globo, que curiosamente decidiu transmitir o evento para Belo Horizonte. É óbvio que Fulano não assina TV a Cabo. Além de ele não ser condescendente com a ideia de se pagar para ver tevê, ele sabe que os canais de esporte pertencem à megera rede de televisão que ele odeia. Segundo porque ele sabia que qualquer que fosse o resultado do jogo seria fruto de uma articulação que a mídia faz junto com as instituições administradoras de campeonatos oficiais de futebol no Brasil.
O futebol, para fulano, é um dispositivo de engenharia social e de manipulação da opinião pública. Por vezes é uma forma de dar a uma parcela da sociedade a ilusão de benefício. Aqueles que aprofundam-se nesse meio ficam predispostos a aceitar o sistema se virem os clubes que foram levados a torcer serem campeões de alguma merda dessas.
Fulano via um vídeo motivacional em seu Samsung Blue Ray Player. Uma palestra do escritor Earl Nightingale, autor de "O estranho segredo". Controle do aparelho na mão, tava fácil mudar de canal. Ficava aquela comichão. Um besourinho da lavagem cerebral futebolística, que perturba a mente de Fulano desde a sua iniciação à instituição na infância, zumbia pedindo para que ele pusesse no jogo para vê-lo ou pelo menos para saber como estava.
A mulher de Fulano dormia. Era daquelas torcedoras que só quer saber o resultado no dia seguinte. Mas, resistente, como havia se disposto, Fulano acompanhou a palestra que lhe ensinou um estranho segredo, além de outras coisas. Foi mais proveitoso para ele. O libertou do futebol. Coisa que o rapaz já sabia se tratar de uma farsa.
A palestra tinha apenas 25 minutos. Ainda restavam cerca de 15 para terminar o primeiro tempo da partida que excitava o besourinho na cabeça de Fulano. O vídeo que assistia ele viu parando, por isso ele consumiu 30 minutos o vendo. Decidira começar a vê-lo tão logo a partida começasse. Fulano logo pegou o celular, meteu nele o fone de ouvido e estacionou na Alvorada FM para ouvir música. No blue-ray player ele pôs um filme de faroeste para ver. Tinha que se esquivar da desestabilização que seus vizinhos ou as pessoas agrupadas nos bares da avenida principal do bairro fossem lhe causar durante as comemorações prós e contras.
O caso é que Fulano estava perdendo a batalha para o bichinho que zumbia na sua cabeça e lhe causava tortura psicológica. Para se livrar dela, de vez em quando ele apertava o botão que acessava o canal de tevê. E via trechos do jogo.
Havia algum tempo que quando Fulano se dignava a ver jogo de futebol na tevê ele cortava o áudio do televisor e usava o celular para ouvir alguma coisa. Antes era a emissora de rádio que transmitia o mesmo, a Itatiaia. Dessa vez ele escolheu ouvir música mesmo. Não queria que áudio de nenhuma forma o desestabilizasse emocionalmente e preparasse o terreno da sua mente para receber informações intrometidas que nela ficariam e modificariam seu comportamento e lhe transformariam em um colaborador idiota.
A música faz isso também, mas como ele ouvia flashbacks era mais possível conviver com ela. Então, o televisor ia parar no mudo nas vezes que o canal de TV era selecionado, exibia imagens do jogo, e Fulano ouvia parada musical retrô em vez da voz irritante, caçando lhe ofender ou alterar seu estado emocional por causa de coisa imbecil, do Cléber Machado ou de quem quer que tivesse sido o narrador da TV.
O Earl ensinou uma técnica para Fulano usar que provavelmente teria o efeito de lhe desprogramar a mente de resíduos de informações recorrentes. Era uma oportunidade para Fulano experimentar. Mas para tanto ele teria que se submeter a ouvir ou o locutor da rádio Itatiaia, o Caixa ou o Alberto Rodrigues, ou o (argh!) Cléber Machado ou quem fosse o (argh!) locutor esportivo da Globo. É óbvio que Fulano decidiu agarrar a oportunidade e optou pelo mais suportável: ouvir a narração da emissora de rádio.
Na palestra do Earl, Fulano ouviu que todos nós ansiamos alguma coisa e todos nós tememos alguma coisa e que temos que perseguir o que ansiamos e enfrentar o que tememos. A técnica que veio à mente de Fulano rezava que se ele se expusesse ao que ele achava que lhe fazia bem se não tivesse os contras e procurasse focar nos contras ele os enalteceria. Fitar os contras é a forma de se livrar de um vício ou de uma lavagem cerebral. Na segunda é preciso de um pouco mais de tática, mas o caminho inicial é esse. Quando os contras são mais deploráveis ou existem em maior número se convence que se deve largar o condicionamento.
Depois vem: imaginar a vida que se quer levar. Fulano queria sossego. Plantar, colher, viver harmoniosamente no campo ao lado da mulher. Ter trabalho independente, que não exigisse dele frequentar ambientes em que fatalmente dividiria momentos com torcedores de futebol ou telespectador do BBB ou de telenovela a lhe aborrecer. Com o trabalho: dinheiro para arcar com as contas. Poder receber a família e os amigos em casa em churrascos que promovesse à beira da sua piscina. Fazer viagens mirabolantes pelo Brasil e pelo mundo.
E nada disso o culto ao futebol lhe dava. Só lhe dificultava possibilitar, devido ao tempo, atenção e até o pouco dinheiro que gastava quando ia ver jogo em bares. A parte 2 do método que Fulano experimentava estava cumprida: No que o objeto de lavagem cerebral que lhe afligia podia contribuir para ele atingir a vida que ele queria levar. Em nada, ele constatou.
Fulano viu lhe esfregando na cara que seu projeto de vida não era ver o time que fora levado a torcer campeão de qualquer torneio que fosse. Não era passar sua existência a exibir para os torcedores rivais o que o time que ele torcia já conquistou. Os que já lhe esnobavam com o excelente padrão social que desfrutavam tinham mais a lhe exibir do que o torcedor de qualquer time supra campeão. Podia ser um torcedor do Barcelona ou do São Paulo se quisermos restringir ao Brasil. Aqueles esnobavam coisas concretas, que eles possuíam. Torcedor não possui título algum, não conquistou uma vitória em cima de time algum. São méritos do clube que ele torce ou dos jogadores. Torcedor é um mero contribuinte e propagador. Se contenta com pouco.
Aí, enquanto na tevê o jogo continuava, o Flamengo havia feito um gol, e no rádio "Let it be" dos Beatles era executada, Fulano, absorto, entrou em transe com uma ótima constatação. O time que vence uma partida ou conquista uma taça, quanto disso depende do torcedor? O torcedor se limita a torcer. Ele é inerte nas ações dentro de campo. Ele é insignificante para a partida. É impotente. Só tem que ficar irritado ou eufórico, mais nada. Sua participação não é decisiva em momento algum. E ele paga por essa inocuidade.
Se um jogador erra um passe, o torcedor não tem o que fazer. Se perde um gol ou se falha, idem. Se é preciso mais raça, ele não pode colocar os caras para correr. Se o juiz apronta, ele não pode mais do que chamar o filho de uma puta de "filho da puta". Se o narrador da emissora de rádio ou de tevê faz um comentário que o incomoda, ele não pode emitir sua indignação contra. Se a televisão expõe anúncios, close na torcida, em alguém no campo ou repetição de uma jogada na hora que seu time está atacando ele não pode evitar a chateação, que é proposital. Se quiser que o técnico faça uma substituição ou que não tenha feito determinada mexida, só lhe resta a reclamação.
Antes das partidas, se o torcedor não quiser que tal jogador seja escalado ele não consegue ser atendido. Neste caso vão olhar para o lobby e não para quem o paga. O mesmo vale para o desejo de que tal juiz não seja o que irá apitar o jogo ou que tal emissora também tenha a condição de transmitir o ensejo para que ele não se obrigue a vê-lo na que ele detesta. Ou que nesta o locutor não seja o que é tachado como inimigo declarado do time que ele torce.
Carlos havia empatado o jogo. Na epifania de Fulano ele, repleto de lucidez, constatava mais coisas. Nos programas esportivos e durante as transmissões a mídia sempre faz uso do espectador. Na maior parte das vezes o faz sentir raiva, ódio, sentimento de vingança. Fazem questão de conservar a rivalidade que existe em cada loco futebolístico. O temperamento dessa forma facilita a entrada de ideias. Sempre após uma provocação ou um fato que causa uma emoção forte no telespectador ou no ouvinte de rádio eles entram com uma impregnação de comercial ou de mensagens patrocinadas. Atacam covardemente o cérebro reptiliano do indivíduo, que é o que é responsável pelos nossos instintos mais primitivos e o que nos leva ao consumo ou ao comportamento bélico. Nunca incentivam a paz. O sentimento de passividade é bom também para programar mentes, mas não no caso.
Motivam as torcidas a irem ao estádio ou a comprarem produtos relacionados ao esporte e aos clubes tão somente para atender a sua necessidade de consumo, que é a de seus patrocinadores. É visível a dependência que esse sistema tem que haja o torcedor e sua boa vontade de consumir as coisas do meio e a sua predisposição para ser instituído. O torcedor é tratado como um capacho, um animal irracional adestrável.
Têm aqueles malditos bafafás que todo o mundo sabe que são para repercutir e dar ibope para o veículo que o propagou. Aquelas notícias vazias, fúteis, envolvendo alguém do esporte. Às vezes escândalos desinteressantes que se tornam interessantes para quem se digna a consumi-los. Notícias infames, falsas, como as que apontam para alguém na torcida e o acusa de racista, de baderneiro, de pervertido. Gente que logo depois costuma ir parar em páginas de revista masculina ou vira celebridade tendo feito nada de útil. Gente que não faz bem algum para o país e que com a hipocrisia da imprensa e de toda a mídia assume importância maior do que um servidor assíduo da sociedade deveria merecer. E isso porque sabem que seu público irá permitir. Seu público é engenhado para permitir.
Besteiras que todos sabem que servem para encobrir algum fato importante ou para amansar e arrancar da sociedade adesão à algo que ela não se sujeitaria. Ser instituído pelo futebol é se tornar um indivíduo bastante frágil, presa fácil para conspiradores. É se tornar predisposto a não se alfabetizar devidamente, a não se politizar devidamente, a não ter ambição por qualidade de vida. Isso até por não saber ao certo o que é ter essa qualidade.
O jogo acabara. 4 x 1 para o galo, que fará a Final do torneio contra o rival local, o Cruzeiro. Decidiram que seria esse o confronto final da vez nesse torneio de merda. Olharam previamente, sentados na mesa redonda do Clube dos 13 ou da CBF, as prioridades, a engenharia social que se precisava fazer, e decidiram, supõe-se. É quase óbvio deduzir que o campeão será o Cruzeiro. Fica mais midiático e se coleta mais recursos para se fazer manipulação do povo se o time celeste acumular mais um título do campeonato imbecil em cima do rival. Fulano, então, passou a ter novas reflexões quando começou a lidar com o pós-jogo.
Os foguetes comemorativos e os provocativos, que hoje são verdadeiras armas de efeito moral, poluíam o ar e perturbavam toda a vizinhança. Iriam causar danos físicos a alguns atiradores, aos tímpanos de pessoas que sequer torcem para qualquer time ou que precisavam trabalhar há não muito tempo de então ou pessoas idosas, bebês ou doentes que precisavam repousar. Quaisquer dessas, exceto os atiradores de foguetes, se necessitasse utilizar um leito de hospital não o teria disponível, pois estes estariam ocupados pelos que se divertiam loucamente por causa do futebol.
Além do foguetório, multidões gritavam nas ruas. Os motoristas passavam sem rumo e com a palma da mão presa nas buzinas de seus carros. Parece não haver leis que disciplinam o uso da buzina dos automóveis restringindo locais, motivos e horários. A polícia passava perto, mas só presenciava a rebelião e o desfile de infrações. Quantos dos policiais são torcedores também? Além do medo de não mexer com quem tem a condescendência subliminar da população para badernar.
E então, o vale tudo fazia sua melhor exibição. A euforia propagava o ódio. Torcedor contra torcedor. Amigo contra amigo. Ser humano transformado em lixo contra ser humano. Gente reunida em gangues de bêbados ou de entorpecidos, entoando refrões de guerra e vestida com roupas de palhaço, os uniformes idiotas de torcidas organizadas, contra gente que saíra do trabalho ou que estava a caminho dele. Cometendo assaltos, invadindo ambientes privados para causar desagrados ao dono. Mijavam na rua. Pichavam monumentos públicos. Havia quebra-quebra de ônibus.
A sociedade é jogada ao julgamento de seres irresponsáveis que não comprometem com o que praticam e nem são punidos por seus atos, quase todos crimes graves. Caos que se repete o ano todo. De janeiro a dezembro tem o câncer do futebol para perturbar a paz. A democracia não vale para quem se opõe a tudo isso. Em muito é quem paga imposto e presta serviços úteis à sociedade. Se controla a população através da tática da desordem, é sabido.
Fulano percebeu que sua vocação de ir para o campo deve ter se despertado devido ao cansaço de lidar com esse quadro social patético, com esses costumes idiotas e com a busca de qualidade de vida. Busca de harmonia e paz. E enxergou que experimentava e via pessoas experimentando mais emoção negativa do que positiva. Era tudo o que ele precisava visualizar para se libertar da escravidão da sua mente proporcionada pelos vastos anos de culto ao futebol. Da fé religiosa ele já estava livre. Foi até mais fácil. Se ele ainda tivesse em alguma igreja ele constataria naquele momento de lucidez que não dá para um cristão continuar acompanhando essa bobagem. Não produz o sentimento que o cristão deve buscar.
Não dá para fazer parte dessa corja, ele pensou. Não dá para continuar a ser torcedor, a pertencer a uma facção que se delicia ou toma atitudes bruscas por causa de futebol. Pertencer à FAARC ou ao Sendero Luminoso é mais nobre. Esses exércitos possuem causa justa e não fútil. "A gente tem mais emoção ruim do que boa ao se relacionar com o futebol". Não dá para uma pessoa inteligente continuar fazendo parte dessa corja. Essa corja manipulada por outra corja, que politicamente nos explora.
"Tem os salários que a gente ganha e o que eles falam que ganham os jogadores para a gente pensar no que estamos fazendo". "Qual a prestação de serviço que faz um jogador desses para a sociedade?". "Têm programado para dizer para quem ensaia este questionamento que eles entretêm, mantém o pobre sonhando". Mas não valia mais esta desculpa para Fulano. Essa explicação que visa comover a massa e a manter controlada por uma comoção ridícula, vinda de uma justificativa irreal, passou a não valer mais para Fulano assim que ele viu a luz.
"Se entretêm, então porque é esporte", ele conseguiu questionar. "Por que não fazem isso de maneira natural?". "O cinema entretém, mesmo os roteiros adaptados da vida real são divulgados como ficção". "Ninguém quer enganar o outro dizendo para ele torcer pelo mocinho porque o mocinho pode ganhar e no final ele ganha mesmo, independente da torcida".
"E a futilidade que é dar atenção para um esporte bobo como o futebol". Passou a zumbir na cabeça de Fulano o mosquitinho da conscientização. Empurrara para lá o outro besourinho. "Um esporte simplório". "Todo imbecil compreende suas regras". "Vai o imbecil do torcedor desse esporte tentar entender as do tênis ou as do basquete". "O interessante do futebol é praticar e não ficar feito otário vendo perna de homem correndo para lá e para cá". "Praticar,sim, pode valer meu interesse, pois diverte e exercita o físico". "Em vez de ficar vendo pessoas praticarem, ganhando dinheiro com isso enquanto os que pagam estão desempregados e com fome: pratica-se". "Não preciso me conter só em assistir, posso também querer ser assistido ou posso pensar que ninguém precisa ser assistido ou assistir". "Ser um mero contribuinte, um bode expiatório, não dá para uma pessoa inteligente fazer parte dessa corrente ou se submeter a isso". "Não dá para continuar dando dinheiro ou audiência para essa merda".
E foi repetindo tudo isso, lendo ou refletindo todos os dias, que Fulano conseguiu deslavar sua mente do futebol. Ele agora vai usar o mesmo método para deslavar-se de outras programações que vêm da infância e da convivência com a sociedade e com a mídia. E também deseja aplicar o método para produzir em si a capacidade para programar-se para realizar os seus sonhos. Buscar um local para viver, onde todos por lá querem o bem comum e a paz. Que não tenha a presença da mídia com a sua função de desarmonizar. Um lugar onde se pode viver sem consumo de supérfluos ou de produtos inúteis, tornou-se o ideal, definitivamente, de Fulano. E agora ele está apto a conseguir o que a vida até então lhe fizera conseguir.