A norma do alcoólatra
Há uma certa misconception a respeito da vida em cidades pequenas que é muito difícil de dirimir a meus amigos de lugares maiores e mais populosos.
Quase sempre, quando digo que moro numa cidade pequena, imaginam que fui abençoado em nascer nalguma verdejante Arcádia, onde o ar é puro e fresco, as pessoas lhe cumprimentam sempre a sorrir e por todos os lados se veem adoráveis casinhas como aquelas das gravuras que gritam a kitsch dependuradas nas paredes das vovós.
A verdade, triste e decepcionante, é a mesma exposta por Voltaire (o cantor, não o filósofo – pequena é minha erudição para citar um nome tão grande com liberalidade) ao escrever “Hate Lives in a Small Town” – ainda mais em se tratando do lugar onde vivo: não bastasse ser um antro de ignorantes, cultural e esteticamente decadente e privado de homens e mulheres bonitos, também é dotado de um insuportável complexo de grandeza, querendo aparentar ser o que não é. Àquele que quiser conhecer São Carlos, posso simplesmente descrevê-la como uma “São Paulo de araque”.
Ninguém representa com tanta exatidão a mentalidade provinciana deste báratro, no entanto, como meu pai; se há alguém a ser tomado de modelo para o quintessencial homem da classe trabalhadora de uma cidade pequena, é ele. Racista e homofóbico ao extremo, intolerante e ríspido, não foi à toa que conseguiu alienar seus dois filhos e fazer uma generosa porção de inimigos com o passar dos anos. Fosse eu registrar todas as peripécias de meu pai, mais de mil páginas não as abarcariam – escolho uma apenas para esta crônica, mas espero que seus ensinamentos sejam de extrema utilidade ao leitor que estiver passando por predicamentos.
Por mais que meu pai tenha feito várias coisas ruins não só em seu papel de pai, mas como um ser humano como um todo, fico contente em dizer ao menos duas coisas boas a seu respeito: a primeira é que é dotado de um bom gosto musical, e graças a ele fui apresentado a Raul Seixas, acontecimento que mudou minha vida para melhor. A segunda foi ensinar-me como ser um alcoólatra tal qual ele – do jeito certo. Afinal, sendo um alcoólatra tão bom, é certíssimo que deve ter um método para tal.
Primeiramente, para ser um alcoólatra tão bom quanto meu pai deve-se ter uma família horrível – caso não, não se pode sê-lo. Pois, como ele próprio disse, “bebo para esquecer o lixo de família que tenho!”. Assim sendo, é bom começar a arruinar as relações com sua família desde já para render-se irrestritamente ao alcoolismo! Já a segunda e última regra, ainda mais importante do que a primeira, toca nos aspectos financeiros da coisa: quem diria que o Deus-Dinheiro necessitaria ser cultuado até aqui!
Retornemos ao assunto. Eu mesmo já tentei seguir os passos de meu pai, but alas! Nunca fui abençoado pelo Deus-Dinheiro, tendo que beber aquilo que há em minha própria casa. Certo dia necessitei embriagar-me para esquecer do fardo pesado cedido a mim pela Vida, e a maior preocupação de meu pai ao ver-me naquele estado foi eu não ter comprado as bebidas com dinheiro de meu bolso: “Eu tenho MEU dinheiro para sustentar meu vício!”, foi o que disse.
E são estas as normas imprescindíveis para que você, afável leitor, consiga justificar sua dependência química, retiradas de uma fonte extremamente confiável que é a boca de meu próprio pai – e espero que, muito em breve, seja ele proclamado nos anais da Literatura como o arquétipo de todos os bêbados e arauto de toda uma escola de viciados.
(São Carlos, 21 de março de 2022
Agradecimentos especiais a Marcos Andrada)