Santelmo

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‘Fogo! Fogo!’ – gritos ecoam de rostos assustados.

‘Mandem mais água! As chamas estão destruindo o centro da cidade de Santelmo! Ah, meu Deus, por que tanta maldade?!’

Lá do alto, pela janela do avião que acabara de partir, Francisco assistia à dança dos lumes encobrindo sua cidade natal. Santelmo, edificada entre morros, era verdadeiro caldeirão de expressões artísticas, culturais e de entretenimento. Recentemente, entretanto, os casarios do Século XVI, longe dos casarões com eiras, beiras ou tribeiras, dos antigos senhores da Colônia e do Império, cediam aos apelos da modernidade e se transformavam, pouco a pouco, em requintados antros de luxúria e libação – era o adensamento do prazer nos minúsculos espaços de cada cubículo. Uma porta. Uma cama. Uma dama ou um rapazola... E sonhos. Entre as quatro paredes, depois que se cerravam as portas, os sussurros da noite eram substituídos por gemidos, confidências, declarações de amor e desabafos de homens e mulheres, todos insatisfeitos com a dura realidade da vida.

Francisco ficara manco depois de uma emboscada onde uma moça acabou assassinada, misteriosamente. Os tiros o impossibilitaram de correr pelas ruas como o fizera tantas vezes na infância e adolescência, mas, naquele momento, seu corpo se afastava rapidamente da cidade e estranhos pensamentos lhe corriam a mente, buscando explicações para a sucessão de tragédias que atingiam Santelmo. Primeiro, os assassinatos. Agora, as chamas dantescas. Haveria relação entre eles?

Até o dia em que fora perseguido por agentes da Delegacia local, a mando do Dr. Castrogiovanni, a vida de Francisco era normal. O delegado, caolho e de meia-idade, era homem de hábitos bizarros. Embora fosse visto pela cidade muito frequentemente, tinha sido transferido da capital somente para tratar dos coevos e recorrentes assassinatos.

‘Sobreviveriam todos os prostíbulos da Rua Comendador Casablanca? Onde estariam todas aquelas mulheres lindas, de fartos sorrisos, tão cortejadas pelos barões das cercanias? No quadrilátero das perversões, cruzamento das Ruas Barão do Rio Branco com Major Facundo, as quatro esquinas, agora vazias, em nada faziam lembrar os vícios humanos que varavam as madrugadas – muitos frequentadores buscavam as mazelas venéreas, o prazer farto, desmedido e remunerado. Era uma silenciosa (quase) relação de escambo, onde todos, aparentemente, ganhavam’.

Francisco não se desligava da terra. Em pleno voo, teimava em refletir sobre o fim de cada um de seus ‘afilhados’, de todas as lindas mulheres e, mais recentemente, homens que agenciara, proporcionando prazer, em troca de vinténs!

O brilho visto do céu era o das labaredas que lambiam os arredores de Santelmo. Que relação teria o fogo com o carregamento de entorpecentes recém-chegado de Ibrahim? Sabia-se que o entreposto de Ibrahim, nas ilhas Minsk, ajudara o crescimento de Santelmo, apesar da destruição de muitos jovens arregimentados pelo crime e do esfacelamento de muitas famílias vitimadas pela imersão desenfreada das drogas entre os jovens.

O avião se distanciava. Francisco, entre aliviado e tenso, anseia pousar. O que não imaginava era que naquele avião, além dele, havia mais alguém fugindo de Santelmo pelas mesmas razões... A certeza veio quando uma mão pesada tocou-lhe o ombro, logo após a aeronave ter se estabilizado no ar, a dez mil pés de altitude.

Ao olhar para trás e fitar o homem que lhe tocara o ombro, Francisco repassou detalhes dos recentes acontecimentos. Era como se o olhar que o penetrava exigisse: ‘Conte-me tudo!’

As declarações jorraram:

‘Sim, eu estava nas imediações da pracinha naquele primeiro de março, mas não fui eu quem encontrou a Catarina morta. Quando cheguei já havia algumas pessoas. Aquela marca circular, semelhante à queimadura, não foi provocada pela minha bengala, eu juro! Também não sei nada sobre o carregamento de drogas que chegou naquela mesma madrugada...’.

O silêncio da voz era desconfortante, mas o olhar exigia explicações.

‘Eu trabalho no centro da cidade e vivo por lá – sobrevivo das negociações, encontro os melhores clientes, os parceiros que me pedem, mas não tinha razões para assassinar o Petrus. Gostava dele e, naquela noite, ele tinha um compromisso. Acredite em mim, não fui eu!’

Uma voz grave interrompe Francisco:

– Havia duas equimoses paralelas e longas entre os mamilos de Petrus. Esse tipo de víbice é produzido por objetos cilíndricos como bengalas, como a sua bengala – a única existente no local do crime. A equimose estava avermelhada, apontando para lesão recente.

– Por que não fizeram perícia? Teriam percebido que não fui eu. Tentei que levassem, mas o senhor não permitiu, por quê?

– Você sumiu com a bengala. Comprou outra?!

– A minha quebrou numa queda que levei. Não sumi, eu a ofereci para perícia. Confie em mim! – Francisco ia falando e se baixando, como a subjugar-se ao interrogante, desprotegido.

– E a morte da Carminha em maio, do Diego em junho, da Penélope em julho, da Patrícia em agosto... Todos mortos no primeiro dia do mês, com a mesma equimose entre os mamilos, não sabe nada sobre isso? Em todas aquelas noites você estava presente ou nas imediações.

– Não fui eu, por Deus!

– E o fogo hoje? Estamos no primeiro dia de setembro... Faz ideia de quantos morrerão naquele incêndio que vimos aqui de cima, logo que decolamos?

– Claro que não! Estou indo embora da cidade. Pretendo não retornar. Sinto que estão me vigiando e isso está me deixando aflito.

– Sim, estamos atrás de você faz tempo!

– Se for pelo agenciamento dos meninos e meninas – insistia Francisco, olhando para os lados – entendo, mas pelos assassinatos, não!

Os demais passageiros pareciam nervosos. Alguns se reviraram nas poltronas para ouvir melhor, identificar os personagens; outros, apenas temiam que algo inesperado e trágico ocorresse. Os ânimos se exaltavam – Francisco era o mais apreensivo.

‘Atenção, senhores passageiros!’ – anuncia o piloto da aeronave. ‘Preparar para o pouso’. Entre Santelmo e a capital, o voo demorava não mais que quarenta e cinco minutos.

As orientações de praxe foram dadas e a aterrissagem, depois da autorização da torre de controle, foi tranquila.

No saguão do aeroporto internacional da capital, discretamente escoltado pelo delegado, Francisco percebia a instabilidade da situação em que se metera e já desistira de justificar a própria inocência. Alguns policiais federais se aproximam. O delegado abre largo sorriso, mas, quando se dirige a um dos agentes a fim de entregar Francisco, ouve o sombrio protocolo policial:

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– O senhor está preso pelos crimes de assassinato, corrupção, agenciamento de garotas de programa e tráfico de pessoas. Tem o direito de constituir advogado, permanecer calado e tudo o que falar poderá ser usado, em juízo, contra o senhor.

...

A Polícia Federal descobriu que era o delegado quem drogava Francisco e forjava o local dos crimes – usando as bengalas, deixava as marcas que eram encontradas nos corpos, por ele mesmo, minutos depois. Antes de ser transferido, era titular de uma delegacia vizinha e se deslocava até a cidade para executar as vítimas agenciadas por Francisco. Os usuários eram ‘presas’ fáceis e a sentença de morte vinha em função das dívidas com a boca de fumo comandada pelo delegado. E os acertos de contas sempre ocorriam no primeiro dia de cada mês, dia do nascimento do delegado, nascido em primeiro de agosto.

O Dr. Castrogiovanni, ao queimar o centro da cidade, tentava silenciar as vozes de duas moças que presenciaram um dos assassinatos. Com refinamento e crueldade, ele executava todas as vítimas. O ápice do ritual era pisotear os corpos, já desfalecidos, deixando os sulcos e as equimoses. Influenciar os repórteres foi outra tarefa simplória. Ele detinha os dados das vítimas e também burlou as manchetes locais, causando pânico ao soerguer o mito do ‘Maníaco da bengala de Santelmo’.

O único ponto ainda obscuro era: como Francisco foi parar naquele voo? Numa carta anônima, o delegado revelou as suspeitas recaídas sobre ele, orientando-o a viajar naquela noite, depois de avisá-lo sobre a criminosa queima dos bordéis – por isso estavam no avião.

Castrogiovanni, depois de algemado, foi conduzido para o cárcere da Polícia Federal. Esteado no instituto da delação premiada, apesar de conhecer as consequências que o crime organizado reserva aos ‘x9’, decidiu abrir o jogo, citando nomes e fornecendo detalhes do arrojado poder criminoso que destruía Santelmo, antes, silenciosamente; agora, pelo fogo – o julgador implacável do pecado.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 04/11/2014
Código do texto: T5023577
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