Caiu algo do céu

A cidade de São Paulo continuava seu ritmo alucinado, mesmo sendo véspera de finados. Muitas pessoas foram para as ruas e para os parques para curtirem um dia ensolarado. Outras tantas correram para a praia dos paulistanos; os shoppings centers. Na cidade fundada por Anchieta, padre jesuíta que foi recentemente canonizado, essas “praias" possuem uma grande variedade de lojas renomadas, cinemas, áreas de lazer, praças de alimentação, e, muito importante; ar condicionado. Em que pese o sentimento de ser assaltado a cada vez que se paga o valor do estacionamento ao se sair de um shopping, quase todo paulistano adora um shopping center. Mas, para azar dos adoradores desses grandes centros de compras, no primeiro dia do décimo primeiro mês do ano de 2014, eles não viram algo que caiu do céu.

No primeiro sábado do mês, aqueles que preferiram ficar percorrendo belíssimos corredores lustrados, fazendo questão de exibirem marcas famosas impressas em suas sacolas cheias de compras, perderam a oportunidade de contemplarem um fenômeno, praticamente desconhecido por muitos, que aconteceu do lado de fora. A ansiedade e a compulsividade capitalista pelo consumo lhes tiraram a chance de contemplarem e sentirem o natural, universal e social fenômeno da chuva.

Algo raro como a água em terra de Geraldo, chuva é algo que se transformou em lenda pelas bandas bandeirantes. Tem gente que afirma de pés juntos, que já a viu e se molhou nela há muito tempo atrás. Tem gente que se lembra de um antepassado que vivenciou tal fenômeno, e por isso repassou o acontecido para as novas gerações. Tem gente que estuda e pesquisa para saber se realmente já choveu em São Paulo, mas alguns destes já pensam em desistir, pois até agora, só encontraram sinais de dinossauros, mas nem um pingo de chuva. Tem gente que imagina que trovão e chuva são efeitos especiais sonoros e aquáticos que só acontecem no cinema de Hollywood. Tem gente que desconfia ser uma conspiração dos governos, para através de dados meteorológicos manipularem o povo e fazê-lo acreditar que tudo funciona e anda bem, sem falcatruas e corrupção. Tem gente que conta que é história da carochinha com fadinhas nas nuvens para entreter as criancinhas. Tem gente que propagandeia que é invenção de comerciantes e anunciantes para venderem mais produtos para casais românticos que sonham dormirem agarradinhos escutando o som de uma chuva na janela. Tem gente que recorda que é uma criação mitológica só para dar uma função para São Pedro. Tem gente que pensa que a dança da chuva é apenas uma dança teatral feita por índios, para ganharem uns trocados de turistas que visitam suas aldeias. Tem gente que transmite que é uma produção midiática e global para alienar os telespectadores e convencê-los a ficarem grudados nas intermináveis novelas, encharcando seus lenços a cada capítulo. Tem gente que tem certeza de que tudo é uma desculpa para uma intervenção dos gringos, que através de recursos da NASA tentam convencer o mundo de que a Amazônia brasileira é na verdade uma rain forest; o que seria uma invencionice imperialista segundo os que acreditam na teoria intervencionista. Tem gente de esquerda que insiste em dizer que é uma tentativa da direita golpista nos levar de novo aos tempestuosos anos de chumbo. Tem gente de direita que acusa ser uma chance da esquerda comunista fazer chover em nosso país a ditadura do proletariado. Tem gente que noticia que os jornais apenas querem fazer tempestade com as manchetes, para venderem mais jornais. Tem gente que anuncia que dilúvio na capital é história de ateu, para que as pessoas acreditem que a passagem bíblica de Noé e sua arca é apenas ficção. Finalmente, tem gente que profetisa que se um dia chover será a prova incontestável do fim dos tempos.

Enfim, tem muita gente acreditando em muita coisa, mas praticamente, ninguém acreditando em chuva. O fato é que até o inacreditável sábado que antecedeu o dia dos mortos de 2014, muita gente morreu sem saber o que é uma mísera chuva. E aqueles que permaneceram dentro dos shoppings e não assistiram ao desaguar das nuvens nas ruas de São Paulo, infelizmente, agora do jeito que as coisas andam, e com os céus cada vez mais rareados de cumulus nimbus, os paulistanos viciados em shoppings correm o risco de nunca virem a conhecerem o fenômeno pluvial, e assim, morrerem acreditando que chuva não passa de invenção ou intriga da oposição.

Jean Richard da Costa
Enviado por Jean Richard da Costa em 04/11/2014
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