PROCURA-SE NAMORADA COM CARTEIRA DE HABILITAÇÃO

E então qualquer miserável pode ter um carro. Disse o jornalista Luís Carlos Prates pondo a culpa do fenômeno social, que deveria ser bem-vindo, no PT. E Roberto Carlos, servente de pedreiro, a um quinquênio de chegar à meia idade, enfim alcançou o status de ser um desses miseráveis. E foi bom ele ter esperado. Seu primeiro carro não teve que ser um fusquinha ou um FIAT 147 como seria se em sua juventude Tancredo Neves, Sarney ou Fernando Collor tivessem lhe dado condições de comprar essas coisas.

Faltava agora a CNH. A maldita CNH. Para a obtenção dela não tem mudança de governo que altere: é o mesmo aborrecimento. "Tem que se enfrentar a mesma máfia", pensava ele aguardando o instrutor na porta da autoescola. Ele que já havia tido três prontuários no DETRAN. Seguia para o quarto prontuário. E, então, o dinheiro gasto com a "bandidagem" era mais pesado. Psicotécnico e exame médico, prova de legislação e de rua que valem por um ano. Se não der, perde-se tudo. Não é mais a antiga validade de cinco anos.

"Malditos"! Lembrou ele do Sistema nas outras vezes que ele tentou se habilitar. Trabalhava ele como mecânico. A remuneração mensal que ele percebia era pouca. Ou tiraria logo a carteira ou desistiria da carreira para todo o sempre. Numa das vezes, o instrutor, ao perceber que o canguinha do Roberto Carlos pagara apenas cinco aulas, já começou falando para ele colocar desodorante antes de entrar no carro. O cara tinha cara de policial civil. Na época era comum de se encontrar um deles fazendo bico nas autoescolas. Usava óculos escuros às sete e meia da noite. Japona de napa, em pleno verão. Sobrepondo uma camiseta cavada listrada de cor sim cor não. Que estrupício! Só faltou o suspensório com um bojo para guardar o revólver nas costas.

Teve outro que fez Roberto Carlos pagar, de dez em dez aulas, quase quarenta. Levou uma grana boa dele, o xingou bastante, como era de praxe a metodologia de ensino, por vezes socou o pé no freio quando não havia nem o limpador de para-brisa atravessando na frente. E Roberto Carlos só pedindo para fazer o exame de rua e o homem dizendo que ele não estava pronto. O aprendiz desistiu, perdeu mais uma vez o dinheiro que empregou, mas não conseguiu fazer o teste final.

Dessa, que talvez seria a última vez, Roberto Carlos teve um dissabor na hora de fazer o psicotécnico. O atendente quis fazer gracinha e disse para ele que ele não ia realizar o exame no horário que chegou na clínica, às quatro da tarde, porque já havia encerrado o expediente. O preguiçoso queria ir embora, mas Roberto Carlos chegou a uma hora do encerramento. Tava escrito na parede o horário de funcionamento. O que deu razão para o gracista foi o fato de Roberto Carlos não ter entendido que o valor da consulta não estava incluído no pacote que o servente de pedreiro comprou da autoescola. O jeito foi aceitar a intransigência do infeliz atendente e voltar no outro dia com a grana arrumada.

Depois vieram as aulas de legislação e o dedo no leitor biométrico. Essa era a grande mudança dos tempos atuais em comparação com as suas experiências anteriores. É só pegar um livrinho com exercícios de perguntas e respostas que nem apostila de cursinho pré-vestibular, ler em qualquer canto, até mesmo na zona, voltar para fechar a aula com a impressão digital e depois fazer prova eletrônica em um estabelecimento conveniado do DETRAN. Foi a primeira vez que Roberto Carlos teve contato com a informática para fins didáticos. Até então era só acessar site pornô o que ele fazia.

E vieram as aulas de rua. Essas sim: não mudaram nada. O instrutor deu as vinte obrigatórias. Falou que ele não estava bom, como RC já sabia que ele ia falar. Insistia que RC não olhava muito para o retrovisor. Que ele não colocava a cabeça um pouco para fora da janela para observar a lateral toda vez que ele engatava a primeira. Que ele tava mal no controle de embreagem. Principalmente nas subidas. E assim foram aulas e aulas a mais. O instrutor só comendo o ordenado do pobre miserável, pagando de ser crente, temente a Deus, chamando RC para entrar para a Igreja, mas fazendo o cara pagar mais aulas sem precisar. Não se tocava o instrutor que ele não deixava para o homem nem o do dízimo se ele topasse entrar nessa fria.

Roberto Carlos surtou, queria que queria fazer o teste, disse que precisava de CNH para trabalhar, disse que teria que viajar e que o dinheiro estava acabando. A contragosto o instrutor levou à dona da autoescola a reivindicação de Roberto Carlos. Ser examinado no teste de rua. Já estava paga a taxa e o aluguel do carro inclusive. Dona Clotilde, que até esse dia sempre recebia RC com risos, ficou uma arara. Deve ter pensado em despedir o instrutor ou cobrar dele a incompetência por não ter sido capaz de fazer o servente comprar mais aulas. A meta, por tradição da autoescola e talvez da classe, era fazer o aprendiz chegar a 120 aulas. RC havia feito setenta. Só aceitou pagar mais três aulas no local do teste porque seu instrutor lhe disse que era assim em qualquer escola de direção automotiva. Falou até que era lei de trânsito isso. Pelo menos ficara sem a comissão. A dona Clotilde não ia querer pagar para ele comissão sobre as três últimas aulas, que ela teve que amargar vendê-las no cheque pré-datado.

O jeito era partir pro plano de sempre: avisar para os examinadores para não aprovar o aluno mesmo se ele for bem legal. Roberto Carlos percebeu que não agradou o establishment e temia acontecer isso. Ele já imaginava dona Clotilde pagando a propina dos funcionários públicos que já recebem uma baita grana do povo para fazer as aprovações ou reprovações na boa. No tempo de RC era assim e não teria porquê ter mudado. Praticamente é o que sobrou para se extrair dinheiro com corrupção no mundo da aquisição de CNH.

Antigamente dava para locupletar no exame de legislação, lembrava RC Era o examinador sabatinando o calouro. Em média dez perguntas diretas e algumas mostrando mapas e sinais para serem reconhecidos. Quase ninguém passava dessa fase na primeira tentativa. Quase ninguém que falo é os da plebe. A burguesia não. Os filhinhos de papai passavam na primeira sempre. Os caras não dificultavam para eles. O papai ia pagar trezentas aulas para deixar duzentas e oitenta pra autoescola mesmo!

E depois aqueles mancebos é que viravam os impunes assassinos de trânsito. E ia a mídia falar que o trânsito está violento, o motorista muito negligente, o sistema pouco rígido. Que tinham que aumentar o número de aulas obrigatórias.

Percebe o laço? Até a mídia entra na jogada. RC imaginava a dona Clotilde separando a grana da mídia e do político que entrasse com projeto de lei para aumentar o número de aulas obrigatórias a serem feitas pelos candidatos à CNH.

Teve uma vez que Roberto Carlos respondeu dezoito perguntas no teste de legislação feito cara a cara com um examinador. Estourara ele a quantidade de respostas corretas para aprovação havia mais de dez perguntas e o homem nada de errar. E nem de ter que responder perguntas. O chato e corrupto do examinador que fazia o interrogatório como se ele fosse da OBAN tinha o semblante irritado. Deslizava de cima para baixo a palma da mão pelo rosto. Até que fez a última pergunta. Coisa que não estava no livrinho que RC comprara na banca de revista. RC errou uma. Podia errar mais duas, mas o famigerado, torturador deslocado e antiprofissional falou que ele não estava bom e o reprovou. Nessa época, essa fase do exame podia ser marcada pelo próprio interessado em habilitação. As autoescolas não viam dinheiro entrar para elas nela. Mas a repetição incidia nova taxa e com isso alguém ganhava dinheiro reprovando os outros e os obrigando a pagar nova taxa para fazer novo teste. Mancou?

Enfim, de volta ao presente, o instrutor chegou, levou RC e mais uma aluna para o local onde se daria o exame. Deu uma volta com eles mostrando as possibilidades de trajeto que poderia cair. Depois deixou cada um deles conduzir o Pálio. Treinou baliza. Quando deu a hora, foi para a fiscalização do veículo. E soltou seus meninos no inferno. RC foi primeiro.

– ! –

Estacionara no outro lado da rua de onde saíra para a avaliação. Os dois examinadores ainda estavam no carro. Um deles assinava um papel e o outro dizia as faltas que RC cometera. Falta de vigiar o espelho retrovisor, péssimo controle de embreagem nas subidas, nada de colocar a cabeça um pouco para fora da janela para observar a lateral ao engatar a primeira. A única correção que diferia do que falava o instrutor para RC era o modo de fazer o esterçamento do volante ao virar à esquerda. RC sabia que teve atenção dobrada e fez tudo certo. Sacou logo do que se tratava. Os examinadores estavam comprados. O instrutor providenciou para eles o que eles podiam explorar como um defeito do candidato em teste para que a operação fosse concluída com êxito. De tanta repetição desnecessária, feitas até quando ele acertava, RC estava doutrinado a aceitar a reprovação se viesse por esses motivos. Mas não sem soltar mentalmente um "filhos de uma puta" ou um "vão para a puta que pariu" ou um "@$%&£".

Bom, sem carteira, mas com carro. Sem poder trabalhar na profissão correta, mecânico, por falta de habilitação, mas tendo como ganhar um trocado no final do mês como servente de pedreiro. RC conseguiu comprar seu carrinho e passou a enfrentar um outro problema: sair com ele. Estava o feio pobre mas honesto sozinho e inconformado. Precisava arrumar uma namorada para sair da solidão. Porém, que mulher quer um servente de pedreiro a pé? Como elas iam saber que ele não era tão a pé? Se vendo com esse dilema, RC não teve dúvida e participou de um programa de rádio no domingo às nove da noite. Na hora que o radialista perguntou para ele como deveria ser a mulher que ele procurava ele respondeu: Que tenha CNH basta.