VELHICE
Hoje precisei ir à uma clínica radiológica acompanhando uma pessoa amiga. Era um estabelecimento muito bem organizado, especializado em procedimentos radiológicos tão diversificados que podiam bisbilhotar os meandros do corpo humano, desde a cabeça até ao dedão do pé.
O contato inicial com os clientes se fazia em um salão espaçoso, limpo e agradável, onde se encontravam várias cadeiras confortáveis, com televisores postados em lugares estratégicos. O salão era dotado, ainda, de bebedouros, garrafas térmicas com chá e café, saquinhos de biscoitos e adoçantes vários.
Um balcão para as atendentes era ocupado por funcionárias muito bem apresentadas, vestidas com uniformes alinhados ostentando o logotipo da empresa. Todas muito expeditas, educadas e eficientes tanto nas informações quanto no atendimento às perguntas dos conveniados.
Cumpridas as etapas formais, meu amigo foi atendido e direcionado para o compartimento especializado no procedimento radiológico solicitado por seu médico. Enquanto isso, fiquei sentado no salão olhando as chamadas mais ao alcance do olhar, nas revistas disponíveis em um cabideiro.
Desinteressado daqueles assuntos, passei a observar o comportamento das pessoas e como se fazia a interação entre clientes e funcionárias. Passei, então, a fixar-me em alguns detalhes mais evidentes e, possivelmente, mais comuns.
Observei que ali estavam cerca de quarenta pessoas e que, dessas, podia contar umas trinta, idosas, com sessenta e cinco ou mais anos de idade. As demais, ou estavam à procura de algum exame ou eram, assim como eu, acompanhantes de alguém.
No meu caso, eu era mais velho do que meu amigo. Os mais jovens, no entanto, acompanhavam idosos possivelmente familiares. Fixei minha atenção no comportamento e na postura dessas pessoas, enquanto aguardavam o anúncio das suas senhas, em um “display” eletrônico, com “leds” vermelhos, que se acendiam juntamente com um sinal auditivo, irritante, em nossos ouvidos.
Os idosos praticamente permaneciam, quase todo o tempo de espera, sentados, inermes, alheios, desinteressados e apáticos. Uns brincavam com os próprios dedos, outros pareciam pensativos, mais outros pareciam dormitar e alguns respondiam monossilabicamente, a uma ou outra pergunta seca do próprio acompanhante.
A maioria dos idosos estava desacompanhada. Esses mantinham as feições de apatia e desvinculação que, talvez, já trouxessem do próprio ambiente doméstico.
O fato é que os que estavam acompanhados, pouco ou nada tinham de estímulos que pudessem provir dos seus afins. Nada de conversa, de brincadeira, de troca de informações ou experiências, e nem mesmo de interesse nas bobagens de desenhos animados pululando nas telas instaladas nas paredes.
Diante desse quadro, considerando minha própria idade, fiquei imaginando o que poderia estar se passando na cabeça daqueles velhos diante do abandono a que estavam submetidos, presente que recebiam dos próprios parentes.
Seriam, talvez, pensamentos ligados ao medo, revolta, ira, remorso, tristeza, apatia, vingança, nulidade, desimportância, impotência, ou outros pensamentos negativos?
O quadro percebido, no salão da clínica, apontava para uma situação que poderia ser apenas, uma extensão do que se passava no seio da própria convivência familiar. Os parentes mais novos pouco se comunicam com os mais velhos. Parece que vivem em mundos distintos e que isso delimitava obstáculos à interatividade e à troca de experiências.
Os mais velhos parecem ser considerados, pelos mais novos, como indivíduos ultrapassados, tal como bagaços de cana, dos quais nada mais há que ser extraído. Na maioria dos casos parecem ser inúteis, incapazes de sustentar um diálogo mais prolongado, diverso do lugar comum.
Nesse estado de divagações, virei a mira para mim mesmo e passei a considerar como eu mesmo qualificava o meu relacionamento com as pessoas próximas. Foi então que percebi que meu desempenho era o resultado das minhas próprias escolhas, relacionadas com o meu baú de registros mentais e das minhas próprias tendências.
Vivendo em cidade afastada do que restou dos meus parentes e dos velhos companheiros de infância, escola e trabalho, passei a viver uma velhice a dois, eu e minha mulher. O computador permitindo a troca de mensagens ainda mantém, fragilizados pela distância, alguns vínculos com ex-companheiros de trabalho ou vizinhos que deixamos.
Todavia, esses vínculos a cada dia, pela ausência do contato pessoal, presencial, não virtual, vai, aos poucos, sendo atenuado e os assuntos, igualmente, ingressam no lugar comum das conversas quase sem sentido...
As alternativas não são muitas para quem, como nós, reside em edifício de apartamentos. Nesse tipo de aglomeração residencial, as pessoas a cada dia se mantém mais isoladas, umas das outras, cada qual pressionada pelos afazeres convencionais e pela tecnologia do virtual. São poucos os contatos vis-à-vis, no saguão da portaria, pelos corredores ou na intimidade de um elevador... Tudo muito rápido, circunstancial, mecânico, desprovido de algum tipo de afetividade. Apenas a educação ainda mobiliza o hábito de cumprimentar com um “Bom Dia!”, “Boa Tarde!” ou “Boa Noite!”.
Esses episódios lembram-me um livro sobre Análise Transacional, com o título “O Que Você Diz Depois de Dizer Alô?”, escrito por Eric Berne e publicado em 1970, um ano após a sua morte. Você já pensou nisso? Pergunte a você mesmo: O que você diz?
Bem, o fato é que as circunstâncias já não incitam, mesmo, ao diálogo presencial e isso vale não só para pessoas de gritante diferença de idade. Parece que ninguém quer mais conversar com ninguém, ou seja, poucos se dão ao luxo de perder esse tempo, se podem correr para algum lugar retirado do burburinho, ávidos para dedilhar, infinitamente, as teclas do seu celular ou computador.
É nesse estado de coisas que as pessoas se dão ao prazer de conversar sobre temas que, na maioria das vezes, pouca importância tem, não raro, com desconhecidos, trocando intimidades, lamentações ou amenidades.
Voltando ao salão da clínica radiológica, enquanto aguardava a conclusão dos exames do meu amigo, percebi que um senhor bem mais idoso, sentado um pouco mais à frente da minha cadeira, lenta e suavemente virou sua cabeça para o seu jovem acompanhante, como a querer dizer-lhe algo. Cientificando-se de que o jovem se mantinha entretido com o que acontecia no seu telefone celular, desistiu do seu impulso e tornou a olhar para a frente.
Alguns segundos, depois, como se estivesse principiando a dormitar, deixou pender a cabeça para baixo, mantendo-se encostado ao espaldar de sua cadeira.
Mais alguns outros segundos se passaram e o televisor emitiu um sinal sonoro associado a um dígito luminoso na tela. Estava anunciando uma senha para atendimento. Ninguém levantou-se para dirigir-se à sala da radiologia. O senhor idoso já estava morto... A senha final da sua vida já havia sido anunciada e ninguém viu. Nem o entretido jovem que já não sabia onde colocar o seu celular...