DIA DOS MORTOS (Metamorfose Ambulante)

Hoje, dois de novembro, é o dia consagrado aos mortos. As pessoas, umas contritas, outras nem tanto e, ainda, outras nada contritas, cuidam de correr para as aléas dos cemitérios para orar, reverenciar, visitar, florir ou dar novo arranjo às covas rasas, gavetas ou mausoléus dos seus entes queridos que já morreram.

A importância da data que provoca movimento anormal nas vias públicas, entupidas de veículos de todo o tipo, é potencializada nos desígnios da fé que associam a morte a Deus ou com a danação eterna, lá nas profundas dos infernos.

As alamedas dos cemitérios, nesse dia, ficam mais complicadas do que as da Feira do Paraguai, nos dias que antecedem os festejos do Natal. A diferença é que ali ninguém compra nada, pelo contrário, as pessoas deixam flores, vasos, oferendas, orações, lágrimas e palavras de lástima ou conforto, que se contrapõem a algumas pragas rogadas por desafetos que visitam os cemitérios a título de uma certa vingança...

“Revertere Ad Locum Tuum” anuncia o dístico plantado bem no travessão que encima o pesado portão de ferro. Ali está um aviso mais do que claro para aqueles que ainda conseguem decifrar alguma coisa na língua que conhecemos como “A Flor do Lácio”, o Latim.

Embora a maioria dos passantes nada veja no que está ali, escancarado, a mensagem é mais profunda do que possamos pensar. Sua tradução, “ipsis literis” quer dizer: “Voltarás ao teu lugar”. Para os que ainda mantêm uma sutil ligação com a língua materna e podem se dar ao luxo de algum devaneio espiritualista o que resulta é o seguinte:

Todo vivente que passa por aquele aviso precisa lembrar-se de que aquele corpo que um dia irá ser companhia dos que já lá se encontram, na comodidade dos seus caixões, irá ser decomposto e suas secreções e resíduos sólidos serão resumidos a células desagregadas, as quais ainda se refinarão reassumindo a condição elementar de átomos.

Os átomos resultantes, por sua vez, cuidarão de buscar a natural recombinação com os átomos que constituem as moléculas da terra da sepultura, isto é, do solo que em linguagem figurada, não passa de “pó”.

Ora, mas o que o vivente não percebe é que aquele corpo físico que ainda entra e sai pelo portão da necrópole é constituído de células adquiridas através da alimentação e do ar que respira. Mas, essas células como foram adquiridas e armazenadas? Pela alimentação! E o que serve de alimento ao vivente humano? Vegetais, minerais e vários tipos de semoventes. Entretanto, todos esses espécimes dos reinos animal e vegetal, também se alimentam do substrato do próprio solo...

Assim não fica nada difícil compreender que, a grosso modo, comemos e bebemos substâncias provenientes do solo, temporariamente metamorfoseadas, as quais retornarão ao berço com a extinção do sopro da vida, nos bípedes pensantes que se esganam na busca por alguma forma de poder.

Aqui, nesse momento, merecidamente, evocamos a memória do falecido Raul Seixas, o “Maluco Beleza”, que com sua profunda sabedoria compôs a letra e a música de “Metamorfose Ambulante”. O Maluco já sabia desde “há mil anos atrás” que nós viemos do pó, somos pó momentaneamente modificado e, depois de nos acostarmos definitivamente no solo do cemitério, nos reintegraremos ao pó de onde viemos. No aforismo de um Mestre, podemos ler a oportuna mensagem que dá o que pensar: “O Homem não é o que pensa ser”...

Mas, como tudo termina ali mesmo, naquele lugar, onde todos os visitantes, um dia, irão se acomodar os que ficarão vivos por mais algum tempo cuidam de se esbaldar no eufemismo para dizer que algum fulano morreu. Piedosamente, dizem: “Foi dessa para a melhor”, “Viajou para o andar de cima”, “Esticou as canelas”, “Foi para o céu”, “Vestiu pijama de madeira”, Exalou o último suspiro”, etc...

Mas, quando quem se refere ao morto é algum desafeto ou ressentido por algum tipo de mágoa, o eufemismo já não é tão eufemístico tal qual pensamos; o sujeito pensa e diz: “Foi para o saco! Já era!

Amelius
Enviado por Amelius em 02/11/2014
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