Somando Períodos
Somando Períodos
De noite eu durmo. De manhã eu acordo. De dia eu como. Não tenho visto no parque nem colibris, nem beija flores. Numa fagulha de tempo sequencial lembro do beijo mais longo da minha vida. Eu tinha uma fita cassete, dessas com 30 minutos de cada lado, e uma noite na casa dela eu pus a fita e começamos a nos beijar. Foi um lado inteiro de laços tão estreitos que pareceu um único ininterrupto beijo de um fôlego só, extenso, terno, nunca dantes concebido. Assim que a música começou a tocar ela exclamou: olha! E disse o título da canção que eu ouvia há anos sem saber o nome.
De noite tento dormir. De manhã acordo ofuscado pelo sol desejando nuvens. De dia encontro pessoas, uma pessoa de cada vez, e a ampliação do meu eu tem de desabrochar por meio de pensamento que se transforma em ação no objetivo de se manifestar nem que seja com trêmulo êxito após o exercício da vontade no entorno concreto, físico, palpável. Como aquele beijo, jamais repetido. Como tomar sorvete de casquinha. Ou como quando eu chego na feira e faço uma encenação na barraca da Claudia, que ou bem ela já deixa minhas encomendas prontas, embaladas e o troco separado e contado, ou nunca mais volto lá. Ela gargalha e me abraça.
De noite eu fico de pé, no quarto, vendo a perspectiva da rua onde um ônibus solitário faz a descida, numa faísca de tempo difuso entro nesse ônibus e diviso homens e mulheres usando chapéus, viajamos sem solavancos numa noite que pretende amanhecer e juntos sentimos o declive da Aclimação e o aclive do Cambuci; adentro numa padaria onde se ouve rádio em baixo volume e adquiro uma bengala embrulhada em papel semi transparente. De manhã acordo imaginado o dia. Em um dia qualquer já lembrei dela, algumas vezes penalizado, por ter se envolvido com um sujeito como eu. Mas nossa união foi breve, e as marcas que ficaram são como riscos de cometa no céu.
De noite penso tantas coisas, percebo os contornos de um mundo sendo parido agora mesmo, capaz de recepcionar com pompas de anfitrião educado seres angelicais de toda a parte, chegando aqui pela primeira vez. De manhã eu lhes digo estarem livres de situações penosas, de tormentos e amnésias, porque de dia e eu meus camaradas estivemos durante anos, não raro a duras penas, mantendo claridade em locais sombrios.
De noite tento jogar a rede, ela é vasta e acolhe catalisadores intuitivos sutis. Quem sabe capto alguma nota que não destoe, que possa ser usada com lisura. De manhã formulo que quem não ajunta, espalha. De dia rumino que a indignação é justa e a ira, torpe. De tarde nada, nunca mais a encontrei e gosto de descer a rua vendo o verde da árvore na frente do azul do céu.
De noite, revirando na cama, compreendo de relance a experiência perpétua e dinâmica de dar com uma mão e receber com a outra, ao mesmo tempo. De manhã reconheço com a vaga esperança de ser reconhecido. Em alguma hora desperto. De dia enfim aceito, ansiando com olhar incerto que a recíproca seja verdadeira e que na soma dos períodos possa simultaneamente conectar e ser a conexão.
De noite, de manhã ou de dia, poderia reencontra-la com ligeira surpresa, e absolutamente nada além deveria ser dito, com uma franqueza sem máculas, de que não somos mais e nem menos do que parte da energia criativa de Deus.
(Imagem: Paul Ranson, 1861-1909)
Somando Períodos
De noite eu durmo. De manhã eu acordo. De dia eu como. Não tenho visto no parque nem colibris, nem beija flores. Numa fagulha de tempo sequencial lembro do beijo mais longo da minha vida. Eu tinha uma fita cassete, dessas com 30 minutos de cada lado, e uma noite na casa dela eu pus a fita e começamos a nos beijar. Foi um lado inteiro de laços tão estreitos que pareceu um único ininterrupto beijo de um fôlego só, extenso, terno, nunca dantes concebido. Assim que a música começou a tocar ela exclamou: olha! E disse o título da canção que eu ouvia há anos sem saber o nome.
De noite tento dormir. De manhã acordo ofuscado pelo sol desejando nuvens. De dia encontro pessoas, uma pessoa de cada vez, e a ampliação do meu eu tem de desabrochar por meio de pensamento que se transforma em ação no objetivo de se manifestar nem que seja com trêmulo êxito após o exercício da vontade no entorno concreto, físico, palpável. Como aquele beijo, jamais repetido. Como tomar sorvete de casquinha. Ou como quando eu chego na feira e faço uma encenação na barraca da Claudia, que ou bem ela já deixa minhas encomendas prontas, embaladas e o troco separado e contado, ou nunca mais volto lá. Ela gargalha e me abraça.
De noite eu fico de pé, no quarto, vendo a perspectiva da rua onde um ônibus solitário faz a descida, numa faísca de tempo difuso entro nesse ônibus e diviso homens e mulheres usando chapéus, viajamos sem solavancos numa noite que pretende amanhecer e juntos sentimos o declive da Aclimação e o aclive do Cambuci; adentro numa padaria onde se ouve rádio em baixo volume e adquiro uma bengala embrulhada em papel semi transparente. De manhã acordo imaginado o dia. Em um dia qualquer já lembrei dela, algumas vezes penalizado, por ter se envolvido com um sujeito como eu. Mas nossa união foi breve, e as marcas que ficaram são como riscos de cometa no céu.
De noite penso tantas coisas, percebo os contornos de um mundo sendo parido agora mesmo, capaz de recepcionar com pompas de anfitrião educado seres angelicais de toda a parte, chegando aqui pela primeira vez. De manhã eu lhes digo estarem livres de situações penosas, de tormentos e amnésias, porque de dia e eu meus camaradas estivemos durante anos, não raro a duras penas, mantendo claridade em locais sombrios.
De noite tento jogar a rede, ela é vasta e acolhe catalisadores intuitivos sutis. Quem sabe capto alguma nota que não destoe, que possa ser usada com lisura. De manhã formulo que quem não ajunta, espalha. De dia rumino que a indignação é justa e a ira, torpe. De tarde nada, nunca mais a encontrei e gosto de descer a rua vendo o verde da árvore na frente do azul do céu.
De noite, revirando na cama, compreendo de relance a experiência perpétua e dinâmica de dar com uma mão e receber com a outra, ao mesmo tempo. De manhã reconheço com a vaga esperança de ser reconhecido. Em alguma hora desperto. De dia enfim aceito, ansiando com olhar incerto que a recíproca seja verdadeira e que na soma dos períodos possa simultaneamente conectar e ser a conexão.
De noite, de manhã ou de dia, poderia reencontra-la com ligeira surpresa, e absolutamente nada além deveria ser dito, com uma franqueza sem máculas, de que não somos mais e nem menos do que parte da energia criativa de Deus.
(Imagem: Paul Ranson, 1861-1909)