Diário de um Mesário

Diário de um mesário

Checo as correspondências já esperando o de sempre, contas para pagar. No entanto, dessa vez tenho uma surpresa, das piores. Fui chamado para ser mesário nas eleições. A palavra presente no documento é convocação, mas está mais para intimação ou condenação. Trabalhar durante 11horas num domingo e ganhar apenas um ticket-refeição que não é aceito em lugar algum é praticamente trabalho escravo.

Resolvo fingir que não recebi qualquer correspondência. Às vésperas da eleição, liga alguém da junta eleitoral para minha casa perguntando quando vou lá assinar o termo de posse. Digo que não recebi qualquer aviso, mas ganho como resposta “estou avisando agora”, que me soou como “foda-se”. Melhor aceitar que dói menos.

Vou até a junta eleitoral e tento ser dispensado do serviço. Alego que estou me preparando para o vestibular, indeferido; dizem que poderei passar o domingo estudando enquanto atendo eleitores ávidos pela realização de um direito/obrigação. Digo que meu aniversário cai no dia da eleição, o funcionário até ri da minha cara e diz “que merda, hein”. Mesmo assim, deixo minha solicitação desejando dispensa.

Dias depois, ligam para a minha casa e dizem que consigo a dispensa caso alguém vá no meu lugar. De repente, algum amigo ou parente. Presente de grego, né. Imagina “cara, te considero muito, você é meu amigão, quer ir trabalhar durante 11 horas num domingo de sol atendendo gente chata e estressada?”. Não dá.

Chego às sete em ponto para começar a jornada eleitoral. Arrumamos a sala e já são oito horas. Logo chega o primeiro eleitor que rapidamente vota e já se retira. Em seguida, chega um senhor de idade reclamando “como ele é o primeiro a votar se ainda são 7:59”. “No seu relógio, senhor”. “Mas vocês passaram por cima da constituição”. E ele já no começo do dia atropela nossa paciência. O coroa vota e sai aos gritos da sala. Por que tanta irritação logo de manhã? Será que ele perdeu o campeonato de dominó da praça?

Chega mais um eleitor, uma senhora de idade avançada. Ela reclama que não existe uma cadeira perto da urna, diz que não vai se “acocorar” para votar. Colocamos a cadeira. Agora ela reclama que a urna está muito exposta ao lado de uma janela com vidro translúcido e que alguém do lado de fora poderia ver em quem ela está votando. Detalhe que a física não permitiria essa visualização, visto que o vidro era tão translúcido que alguém poderia até confundir a Megan Fox com a Gretchem. Mesmo assim, colocamos um cartaz tampando a janela.

Um pouco de sossego. Começo a me divertir vendo os nomes de alguns eleitores.

Adorível.

Adoníria.

Clemilton.

Railanderson.

Relson.

Crisólito.

Chega mais um senhor de idade para votar. Porém, acompanhado de um sujeito que diz ser seu filho e que vai “ajuda-lo” a votar. Realmente, deve ser muito difícil apertar alguns botões. Não deixo. Ele reclama, pergunta, reclama, pergunta, diz que é direito dele e bla bla bla. Não deixo e ameaço chamar a polícia e denunciá-lo por desacato, já que estou no momento em situação de funcionário público. Ele vai embora, mas diz que volta mais tarde. Cara de pau. Fico o dia inteiro, nem vou almoçar, só para estragar a falcatrua.

Chega um sujeito para justificar o não voto. Geralmente, tem esse direito quem está fora da cidade em que vota. Porém, ele não está, só está num bairro distante. “Mas eu moro em Bangu”. Como o Google diria, “você quis dizer: inferno”, penso. Digo que Bangu fica na cidade, logo, ele não tem o direito de justificar. “Mas é muito longe, vou trabalhar o dia todo como motorista. Minha linha é Japeri-Gávea”. Não é possível que ele não vá passar por alguma outra cidade – ou mesmo por Bangu – nesse itinerário todo.

Alguns pais vão se encaminhando até a urna acompanhados de seus filhos. Digo que não pode, mas não adianta. Crianças hoje em dia têm tablets, videogames, ipad, iphone, itouch, ifuck, não sei qual é a graça de apertar o botão de uma urna. Ameaço dar uma de tigre e arrancar o braço do moleque, aí o pai desiste.

Uma mãe aguarda na fila com uma criança de colo e vai para a fila preferencial. Detalhe que o menino estava correndo segundos antes. Outros eleitores manifestam-se contra, dizem que ela deve ir lá para o final. Ela vai. Quase uma hora depois, ela já está na frente, prestes a votar. No entanto, as pessoas por ali já não são as mesmas e se colocam contra o fato de ela ter ficado esperando, dizem que é caso de denúncia. Joga no google a fábula do burro.

Não aguento mais digitar números, dizer “assina aqui” e ouvir o barulhinho da urna eletrônica.

Pelo que fiquei sabendo, sou obrigado a aceitar mais três convocações. Saudades da Ditadura*.

*Aos politicamente corretos, é brincadeira, uma ironia.