"IN MEMORIAN", UM VOTO À MEMÓRIA RECENTE!
Rodando a cena:
Em impecável arranjo pessoal que nos reportava aos zelos dos tempos de outrora, num vestido de seda clara de minúscula estampa floral pastel e sapatilhas "dum ouro velho" confortáveis, bem cedinho ela já estava lá, na fila das prioridades, pronta para votar pela vida cidadã.
Acompanhada dum cuidador que dela tratava com atenção especial, vinha com dificuldade pela sua caminhada duns aproximadamente oitenta e poucos anos, talvez mais, a passos curtos e trôpegos que se preparavam para alcançar, depois duma longa escada, a urna na qual seu dedo legitimaria sua ânsia de futuro.
Chegou aos mesários.
Na pochete de mão, trazia cuidadosamente seu título de cidadania anexado com um clip ao documento com foto recente que provava que ela ainda era ela, com todo direito de continuar sendo, a despeito do tudo que sempre muda numa vida de cenário completo e complexo.
Estava a minha frente e assim pude perceber, pela linguagem corporal, uma certa dificuldade neurológica perante suas mãos trêmulas a apresentar toda a documentação, bem como a memória recente que já lhe traía por não fixar muito claramente os objetivos das horas.
-Vou votar para o que mesmo?- perguntou ao mesário.
Antes que ele respondesse algo ela prontamente se lembrou.
-Ah sim, hoje é só para presidente, certo? Está mais fácil...
Liberada a urna para a sua votação, de lá de dentro ela questionou:
"Moço, eu treinei muito, mesmo assim só me lembro do rosto, mas não me lembro do número do rosto que quero votar".
A situação era inusitada e parecia não estar prevista na logística de votação.
Informada de que ele, o mesário, não poderia lhe informar sobre, ela pediu um momentinho, e foi lá fora se informar do número que lhe fugia da memória recente.
"Bisa- falou a acompanhante-só ativa a memória como o terapeuta lhe ensinou, lembra?".
"Ah, agora lembrei sim...".
Logo que voltou, parecia fazer um esforço sobrenatural para não esquecer os dois números que pareciam lhe valer ouro, e assim que a urna cofirmou sonoramente seu voto, ela exclamou sob um sorriso largo e comovente:
"Acertei, é esse o rosto que quero".
Senti que parecia descobrir algum caminho...perdido, ao menos ali, na sua memória claudicante.
Saiu do recinto com a mesma elegância com que entrou, se despediu dos mesários e dos que estavam a sua volta, dando-nos a impressão que cumprira, até a última gota da sua memória recente, a difícil missão de ainda tentar retomar... algo que ficou lá atrás.
Confesso que a cena me comoveu tanto, que senti vontade de chorar.
Depois me perguntei o porquê da minha emoção, afinal era um só um cidadão votando.
Entendi que, decerto, boas memórias são naturalmente lendas vivas de felicidade que todos tendemos a eternizá-las, enquanto ainda nos houver tempo de lembrar.
E desejei muito que ela, assim como todos nós , pudéssemos retomar nossas pérolas "in memórian" daquilo que ainda acreditamos ser possível...