ATÉ MAIS, OFÉLIA

           Republicação – Texto de 1997
 

 
 
     A mulher vai passando silenciosa pelo homem que toca violino junto aos mendigos da Estação República.
     Peter Pan encontra a pedra de crack no bolso da calça jeans e se põe a sonhar...Wendy, ao seu lado, também se põe a sonhar...
     O olhar do homem que entra no Franz e aguarda o café expresso não se parece com um céu em chamas. Enquanto toma o café, apenas vê os brancos garçons suspensos por seus fios invisíveis.
     O céu baixíssimo protege a velha biblioteca com seus ratos de outros tempos.
     O palhaço com imensas pernas de pau atravessa o Viaduto do Chá, anunciando... Você só fala, fala, mas não faz nada, diz a balconista, que por um instante largara o balcão e estava à porta da loja.
     Fernando Pessoa cumprimenta timidamente a mulher, que continua a passar silenciosa. Ele lhe faz um gesto como quem diz: Isso também passará. O poeta atravessa a Rua Direita com o chapéu em uma das mãos e na outra um gatinho que acabou de recolher  da calçada.
     O homem que toca o violino vem, cercado pelo séquito de mendigos. O homem que toma café no Franz se cose à parede. Um rato pardo, que acabou de sair do bueiro, tem nos olhos a certeza de que o mundo perfeito não precisa, absolutamente, de queijos. Tento surpreender nele algum ar de mártir cristão ou de monge zen, mas já desapareceu.
     Fernando Pessoa solta o gatinho, despe o casaco e se põe a dançar, frenético. Ele grita Ofélia vem dançar vem dançar vem dançar e a multidão que se dirige à missa também grita Ofélia vem dançar vem dançar vem dançar.
       Ofélia dança e vai soltando, um por um, todos os seus véus e nua, continua a dançar.
     Fernando Pessoa para, veste o casaco, pega o chapéu do chão com o gato dentro e se despede: Até mais, Ofélia.