BEM-TE-VI
BEM-TE-VI
Beto Machado
Estava em alvoroço a vida daquele casal de bem-te-vis. Cantava e voava sistematicamente do poste de luz para a árvore próxima e da árvore para o telhado do sobrado da esquina da Rua Meia Oito com a Rua Meia Sete. Era uma tórrida tarde, mas as coisas seguiam normais, dentro dos parâmetros comuns a uma comunidade recém libertada do julgo do narcotráfico.
A Serra do Mendanha mostrava, mais uma vez, aos olhos preocupados, as espirais de fumaça, sinal que as queimadas criminosas prosseguiam, sem nenhuma previsão ou mesmo esperança de cessar.
A causa que motivara a apreensão e o desespero do canoro casal era tão nobre quanto justa. Um dos filhotes do seu ninho decidiu abandonar o lar, tamanho era o calor provocado pela queima da mata. Essa sua fuga atabalhoada e extemporânea lhe custou alguns esbarrões nos galhos, trombadas em paredes brancas ou envidraçadas, durante o trajeto até chegar àquela esquina, sempre sob a observação dos pais. Estava ali uma lição para os humanos. Devemos tomar decisões em qualquer situação.
O fogo na serra alcançou a copa de árvores que abrigavam ninhos e tocas cujos habitantes tiveram que contar com muita sorte e habilidades para sobreviver à conseqüência nefasta de atos imbecis, quase sempre impunes. Ouvimos durante anos e anos um álibi dos incendiários, que é um mito: incêndio espontâneo na floresta. Desculpem-me. Mito coisa nenhuma. É uma mentira deslavada, alimentadora da sede insana dos piro maníacos, dos agricultores irresponsáveis e de outros igualmente irresponsáveis freqüentadores do mais aprazível e bucólico ambiente natural da zona oeste do Rio de Janeiro.
A Barbearia do Pimpolho estava em plena atividade quando o pequeno pássaro adentrou ao recinto sem se anunciar. A janela escancarada facilitou seu intento. O guri que explicava para o barbeiro qual era o estilo do corte de seu cabelo, ao ver o vulto do passarinho passando e pousando, quase deu um pulo da cadeira. Pimpolho, sempre no controle da situação, vaticinou: “Deixa comigo. Depois eu cuido dele. Deixa o bicho quieto.”
Os bem-te-vis adultos acompanhavam o peregrinoso vôo do filhote, e intensificaram o seu canto, pousados no poste ou nos fios elétricos, em frente à barbearia, como se chamassem o filho. O instinto animal carreou o passarinho sortudo, sobrevivente, para debaixo de um móvel do salão. A despeito do alto volume do som de “funk”, dentro e fora da barbearia, o filhotão esperto ouvia nitidamente o canto lamentoso de seus pais. Era um cantar que não se assemelhava ao de seus familiares. Era um cantar choroso, sem aquela melodia repetitiva que produz irritação nos ouvidos dos insensíveis. E o filho entendia plenamente aquele código sonoro, lançado no ar pelos pais. Não era só lamento, só um chamado. Era também uma denúncia. Denúncia da devastação da floresta pelas queimadas; denúncia da substituição das matas ciliares por lavouras de subsistência; denúncia da construção de castelos inoportunos, manchando a imagem e desequilibrando o eco-sistema Mendanha-Gericinó. Pena que os humanos não conseguem decifrar a língua dos pássaros, a não ser a advertência sugerida pelo canto e pelo nome BEM-TE-VI.