Um cândido Severino
“E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina.” Severino Cândido. Quarenta e nove anos de idade. No próximo ano, o pernambucano completará 50. Com olhos verdes e emoção à flor da pele, ele saiu de Ribeirão, cidade de Pernambuco, em um caminhão. Não sabia para onde estava indo. Não sabia se conseguiria chegar. Apenas embarcou na carroceria do veículo para seguir viagem e buscar uma nova realidade. Em 1994, chegou a Campos dos Goytacazes, o maior município do interior do estado do Rio de Janeiro. Parou em um posto, na rodovia BR-101, em frente ao Hospital Ferreira Machado.
“Para onde tu vai?”, perguntou o caminhoneiro, que oferecera carona a Severino sem sequer conhecer o homem, na chegada a Campos.
Ao olhar ao seu redor e se deparar com uma cidade desconhecida, apesar de encorajado pela busca da promessa de uma nova vida, sentiu-se perdido. Não tinha casa, comida e família. Deixara os seus no distante Ribeirão para realizar os sonhos da juventude. Mas, ao pousar em solo campista, não sabia responder ao questionamento de seu companheiro. Olhou para o céu e viu a lua de São Jorge, que iluminava a planície goitacá.
“Eu vou para onde o dono daquela lua quiser”, afirmou, apontando para o céu.
“Então você vai para a minha casa”, convidou o caminhoneiro, levando consigo o novo colega e suas marcas de 29 anos de vida.
Com os olhos marejados, sobre um banco de areia à margem do rio Paraíba do Sul, Severino relembra a chegada a um local estranho, em um estado novo. “Conheço esse Brasil. Já passei por 16 estados. Aprendi a cultura e a culinária de cada lugar. Não sei ler. Se você me perguntar o que é um ‘o’, vou te responder que é a boca do copo”, e sorriu, apontando para a cerveja em sua mão. “O que você sabe por leitura, eu sei por ter vivido.”
Cercado por amigos campistas e pelo filho Gabriel, de 10 anos, que brincava no rio, Severino sorria ao reviver detalhes de sua história. Quando chegou a Campos, recebeu uma enxada e a possibilidade de trabalhar com corte de cana de açúcar. “Não aceitei. Fazia isso em Pernambuco e queria algo diferente. Aí virei metalúrgico. Trabalho com isso há 15 anos. Não tenho estudo, mas muita gente aprendeu comigo. Eles estão por aí, em empresas, e aprenderam tudo comigo”, conta, enquanto as lágrimas insistem em rolar pelo rosto cansado e sorridente.
O nordestino não se arrependeu de sua mudança para outra realidade. Os sonhos não se realizaram como era seu desejo, mas diz-se feliz e agradecido por tudo o que construiu nos últimos anos. “Já tive muito dinheiro. Cem reais, para mim, eram troco. O que você considera dinheiro, para mim, era somente troco. Perdi tudo. Sei que, um dia, Deus vai me restituir.”
Severino construiu família em Campos. Divorciado, o pernambucano tem seis filhos. “E eu tenho uma filha doutora”, grita para os amigos, com expressão de orgulho no olhar ao se lembrar da formação de uma de suas meninas. “Eu não estudei, mas ela é formada em Química. Nem mora aqui. Vive em Pernambuco e trabalha no Suape”, gesticulou em direção ao horizonte, tombando parte de sua cerveja.
Pouco antes, Gabriel, o filho caçula, de 10 anos, se aproximou e pediu ao pai para ir embora. Estava cansado por ter brincado durante tanto tempo nas águas do Paraíba. “Aqui, filho, pegue o seu chinelo e pode ir.” Severino, então, recomendou a um amigo que o entregasse com cuidado à ex-mulher, mãe da criança. “Ele e outros três nasceram aqui. Os outros, mais velhos, não”, revelou.
Ao observar o Rio Paraíba do Sul, que enfrenta a pior seca dos últimos 90 anos, Severino se lembrou do seu Nordeste. Nada se assemelha ao que passou no estado. “Isso aqui é felicidade. Olho para o rio e fico alegre. Já passei fome, já passei sede. Você não sabe o que é ter que andar por mais de seis horas para conseguir um balde d’água. Sabe o que é ficar seis horas sem beber nada? Agora imagine o que é isso debaixo do sol”, recordou, limpando os olhos com as mãos calejadas. “Agora, é diferente. Se eu quero água, ando cinquenta metros e volto com ela para casa.”
“Sabe, menina, não tem gente com fome que não tenha alimentação na minha casa. Conheço vida, fome e sede. Você não sabe como é ver um pão e não poder comprar. Você não sabe como é a fome quando vê alguém comendo e não pode comer também. Ela aumenta. É muito triste.” Emocionado, o nordestino tenta, em vão, segurar as lágrimas. Olha para os lados ao respirar fundo em uma tentativa de conter a emoção.
Severino vive no terreno da Usina São João, em frente ao Paraíba. À noite, o metalúrgico vai ao rio para pescar e se distrair. Com a seca, transforma a areia, por onde corriam as águas do rio há pouco tempo, em um ponto de diversão. “É um lazer muito gostoso. Pode colocar no jornal que essa é a ‘área da Cabeça da Coroa’. Vamos oficializar como área de lazer aos domingos”, brincou, no momento da chegada da equipe ao local.
Em um gesto cordial, ao final da entrevista, o homem chamou-me para perto e sussurrou. “Quando você quiser alguma coisa, qualquer coisa, peça a Deus. É assim que tem que ser. E sempre em pensamento para ninguém ouvir”, ensinou-me. “Isso aqui, tudo isso aqui, é passageiro. Nada disso faz diferença na minha vida mais”, afirmou, ao esticar a mão para me cumprimentar, com o largo sorriso característico de um brasileiro que, apesar das dores, agradece sempre por mais um dia de vida.