BALA PERDIDA
Um corpo é atingido, e alguém desesperado grita:
- Está morto! Foi bala perdida!
Mas foi mesmo uma bala perdida?
Perdida é um termo muito pejorativo, ultrajante. Hoje não sei, mas nos meus lindos e idos tempos de criança, quando se falava em perdida era para simplesmente se referir aquela mulher vadia que resolveu, por prazer ou negócio, usar seu corpo em deleites mil, proibitivos pela sociedade.
Perdeu a virgindade fora do leito nupcial era uma perdida.
Mas e a bala? Será que ela perdeu alguma prega? É ela uma desvairada que por isso anda as tontas matando esse e aquele vivente?
A bala tem vontade própria?
E a dúvida permaneceu até que resolvi conversar com uma dessas tresloucadas.
E fui.
Um corpo inerte teimava em permanecer numa poça de sangue.
Pulei por cima dele, e fui ao encontro da bala perdida.
Lá estava ela estatelada presa na parede.
Cheguei, medrosamente de mansinho, e vi a insana tentando desesperadamente se desprender da parede em que se alojou. Trazia ainda resquícios do sangue da vítima que ela miseravelmente atravessou.
- E aí sua perdida, satisfeita com o que acabou de fazer?
- Não sou perdida! Respondeu-me ríspida a bala toda deformada presa na parede. Parou de se movimentar, olhou-me demoradamente e continuou no seu sibilar:
- Sou o acaso, mas não sou o caos! Estou na malquerença de um corpo inocente que apodrece! Não me controlo; a direção se estabelece a partir de um maldito estampido! Sou ejetada, e pelo caminho ouço gemidos e só paro esfacelada grudada nas paredes.
Parou um pouco e perguntou:
- Sou apenas isso! Sou perdida por isso?
Não respondi, tal era meu ódio por ela.
- Sou fruto de desavenças, de descontroles; culpam-me para desculpar a mão assassina destreinada!
Parou um pouco pensativa e continuou no seu zumbido.
- O corpo que ali está estendido ninguém sabe quem matou, mas todos gritam em uníssono: -“Foi a bala perdida!”.
Pensou um pouco e continuou.
- Destruam todas as armas de fogo, e todas as balas perdidas desaparecerão!
Silenciou, não quis mais conversa comigo.
Num último esforça ela se desprendeu de onde estava e foi se acomodar no chão.
Minha vontade foi de pisar nela.
Não o fiz porque não deu tempo.
Ouço um tumulto, gritos e estampidos; Uma bala sibila perto de mim e um corpo gemendo se estatela no piso.
Joguei-me apavorado onde estava, de bruços, com a mão na cabeça.
Quando o rebuliço se amainou, levantei vagarosamente a cabeça olhando de um lado e de outro, e apenas vi alguém, que curvado sobre a vítima, gritava por socorro.
Perguntei para meus botões:
- Puta merda, será que foi outra bala perdida?