O ELDORADO DO REALEJO

Dia desses, numa dessas quintas- feiras infernais, super agitadas, um compromisso me tirou da minha rotina a me levar pelas escadas rolantes do tempo, num lugar que nem de longe parecia ser, mas que a mim me era algo estranhamente bem familiar.

Reavivar a memória perdida nas reminiscências inconscientes é algo interessante, não apenas do ponto de vista neurológico, mas principalmente ao conteúdo e ao fluxo da poesia.

Num desses mais tradicionais shoppings da cidade de São Paulo e talvez já fizesse uns vinte anos que aquelas escadas rolantes-hoje algo labirínticas-não me transportavam para cima e ao passado, em fracções de segundos me reportei ao ápice das épocas mais pueris da vida, as de nem tão antigamente assim, onde tudo nos parecia incrivelmente mágico.

Naquele local, meados dos anos oitenta, existia no último piso da edificação um espaço romântico, um "boulevard temático" que ali também nos reportava a um tempo mais longínquo que este meu que aqui descrevo, quase meados do século vinte, onde um jardim estilizado aos anos trinta, com luminárias elegantes e bancos de madeira, nos convidava a sonhar no tempo, depois de se tomar um sorvete de creme ou sacar uma fotografia na máquina do tempo com vestimentas típicas do passado, a também a ouvir o realejo cuja manivela era acionada pela mão dum senhor já idoso, carrancudo, de olhos profundos e bem barbudo, cujo pásssaro trabalhador, com o bico, nos tirava a nossa sorte em papeizinhos bem embrulhados.

Nunca contei para ninguém, tinha vergonha, mas morria de medo de tirar uma má sorte no bico daquele papagaio "perigoso", porque acreditava piamente naquilo, como ainda acreditava em tantas outras promessas ao "eldorado da vida", então, nunca me aproximei do realejo, só o olhava de longe.

Eu ainda nem desconfiava que ninguém escapa da sorte, que alguns chamam de destino, seja com ou sem os embrulhinhos embalados pela poesia do realejo.

Aquele boulevard tinha uma arquitetura decorativa de encantar os olhos e eu viajava no encantamento de menina adulta: no teto, telhados de casinhas de madeiras, com janelinhas e floreiras nos beirais, gerânios cor de rosa, talvez, lembravam a cultura das moradas européias de antigamente, nos transportando ao cenário de páginas dos contos infantis tão próximos, mas tão distantes da vida.

No Natal, o espetáculo era delirante...de tão belo e ali, naquele dia, percebi que aquelas cenas mágicas nunca foram embora de mim.

Pontualmente, de hora em hora, as clássicas músicas natalinas disparavam a abertura das diversas janelinhas que circulavam toda a circunferência do teto e bonecos mambembes, em vestuários elegantíssimos, nos saudavam frente ao Natal que se aproximava.

Luzes se acendiam e minúsculos pisca-piscas coloridos emolduravam o cenário repleto de árvores natalinas de encher os olhos e transportar os nossos sentidos.

Hoje comparo o que ali existia ao carrilhão da praça de Munique que a cada tempo também nos convida a sonhar com mágicos mundos dos eldorados da infância.

Naquela quinta- feria, assim que cheguei ao último piso do shopping, imediatamente procurei pelo boulevard.

Procurei como quem procura ansiosamente por algo esquecido ali, algo de precioso de si mesmo perdido no tempo.

Mas, dele apenas encontrei recortes do cenário onde partes das casinhas e janelinhas ainda decoram o teto algo abandonado, indicando que mais um tempo anônimo passou por ali, deixando suas ruinas como peças de museu, qual resquícios dos sítios arqueológicos das vidas.

Agora, um emaranhado todo apinhado de lojinhas de "fast-food" invadiram o antigo espaço, algo deteriorado, indicando que a poesia abstrata do tempo sempre dá lugar ao invisível progresso da realidade concreta e míope às histórias, e no caso, ao espaço da gula capitalista despersonificada da atual era da moda gourmet.

Tempos que mudam mas que nunca permeiam suas mudanças nos nossos sonhos ainda pueris, como aquele de tirar a sorte grande.

Ali, confesso, em meio as luzinhas que prontamente a mim se acenderam, fechei os olhos, revi meus natais, as árvores cintilantes com penduricalhos belíssimos, a queda dos flocos de neve, cumprimentei os bonecos que me saudavam, fotografei-me na máquina do tempo, e claro, escutei o realejo e finalmente... dele me aproximei para tirar a sorte grande.

Afinal, pude ali voltar depois de tanto tempo e, no alcançado eldorado da vida, tive a felicidade de ainda encontrar tudo no mesmo lugar... igualzinho como um dia ali deixei, bem aqui, dentro de mim.