As sandálias ( Para o meu filho Gabriel)
Naquele dia fez uma coisa rara em sua vida: levantou cedo, antes dos carros tomarem as ruas da cidade com seus roncos ensurdecedores e acordar quem ainda ousava em dormir, para fazer uma caminhada, pois, ouvira dizer que acordar cedo e sair para caminhar fazia bem para a saúde, então resolvera experimentar. Se realmente fizesse bem iria acordar cedo pelo menos uma vez por mês. Já era alguma coisa; mais do que isso seria para ele um esforço acima do normal e é claro que isso não poderia ser bom.
Ficaria de mau humor doze vezes por ano: acordar cedo o deixava de mau humor.
Acordou com a ajuda do despertador e depois de respirar fundo por três vezes se levantou num movimento rápido para não desistir. Como seu estômago ainda estava dormindo, pois, metade do seu corpo não havia acordado ainda, tomou apenas uma colher de mel e deixou para tomar o café depois que voltasse da caminhada.
Vestiu a roupa, calçou as sandálias e saiu para a caminhada.
Saiu de casa ainda meio tonto, mas satisfeito de ter conseguido acordar antes dos carros. Aqueles malditos o acordavam todos os dias. Foi um prazer para ele vê-los todos parados nas garagens e pensou: um dia eles vão andar sem fazer barulho, pena que talvez não estivesse mais vivo para presenciar isso.
Andou três quarteirões e lhe deu uma tremenda vontade de correr. Achou estranho.
Há anos não dava uma corrida; mas não se conteve e começou a correr apesar de se sentir constrangido pelo fato dos outros o verem fazendo isso. Correu uns cinco quarteirões e parou, pois , se cansou rapidamente. Sentiu-se aliviado de ter parado. Não gostava de chamar atenção.
Mas logo lhe veio outra vontade: a de chupar sorvete e quando percebeu já estava entrando na sorveteira do Almeida que lhe conhecia há muito tempo por ele passar todos os dias em frente a sorveteria, mas nunca entrava. Até então não gostava de sorvete. Achou muito estranho mas a vontade era enorme e pediu um sorvete de morango. Nem é preciso falar que o senhor Almeida ficou muito surpreso de vê-lo na sorveteria tão cedo e mais ainda de vê-lo comprar um sorvete. Estava acostumado a ver o seu filho fazer isso quase que diariamente, mas ele era a primeira vez.
— É Almeida de vez em quando precisamos quebrar a rotina, né? Falou isso apenas para quebrar o espanto do sorveteiro e saiu rapidamente para não ter que dar maiores explicações.
Nem o sorvete havia acabado veio outra vontade: comprar uma revistinha em quadrinho do Batman. Achou muito estranho, mas para quem já havia corrido cinco quarteirões e chupado um sorvete de morango às sete horas da manhã ,isso não ia fazer muita diferença; então foi até a banca e comprou a revista. E teve que usar a mesma frase que usara na sorveteria, pois, o jornaleiro também ficou um pouco surpreso com o fato, e saiu andando rapidamente.
Antes que desse outra vontade daquelas, com muito custo, conseguiu voltar para casa. Estranhou o fato de ter subido as escadas correndo, pois, era a primeira vez que ele fazia isso em pelo menos quarenta anos quando deixara então de ser menino. Abriu a porta, com o coração saindo pela boca, sentou-se num banco que ficava na área de serviço e quando foi tirar as sandálias começou a rir sozinho e entendeu toda aquela aventura: calçara, enganado, as sandálias do filho.