O Debate sobre os Pardais
O Debate sobre os Pardais
Pra consternação geral, alguém da platéia disse que o debate acontecia em data errada, que certo mesmo seria se tivesse tido ensejo em 20 de março, Dia Mundial dos Pardais.
Ninguém disse nada e a presciente, perdão, presidente, começou dizendo:
- Os pardais têm sua origem, ou seja, são nativos da Europa, Ásia e norte do continente africano. Essa espécie é bastante humanizada, uma vez que convive próximo aos seres humanos. Nos centros urbanos de diversos países do mundo os pardais se alimentam de restos de alimentos humanos e habitam em edificações tais como varandas, beirais de casas, lacunas de prédios, entre muitos outros lugares.
Aplausos.
Foi a vez do candidato da oposição tomar a palavra:
- Os pardais estão desaparecendo. Eles costumavam construir seus ninhos debaixo dos telhados das casas. Entretanto, alterar projetos arquitetônicos em assentamentos urbanos não deixa lugar para eles se aninharem.
Isso teve o efeito de uma revelação bombástica.
A presidente reagiu de modo incisivo, bradando que são as elites que estão exterminando com os pardais.
O moderador pediu moderação, embora o candidato tenha bradado, sem moderação, que diretores ligados a certa estatal foram negligentes e a radiação das torres móveis e o excessivo uso de fertilizantes químicos estão agravando o problema e foram identificados como dizimadores de pardais.
- Blasfêmia! - vociferou a presidente.
Sem se importar, o candidato prosseguiu:
- Os pardais têm sido muito negligenciados apesar do seu desaparecimento visível das áreas urbanas, bem como em localidades rurais. Isso se reflete no fato de que nenhum estudo adequado em todo o país foi realizado para contagem do número de pardais. O desaparecimento dos pardais tem sido amplamente censurado e as tímidas respostas por parte do governo, quando surgem, apresentam-se suaves, quase alegóricas.
- Infâmia - rugiu a presidente, que, amparada por assessores, tomou um gole de água e pediu a palavra.
- Não acontece só no Brasil. O declínio do número de pardais no mundo é proveniente da ação antrópica, um exemplo claro desse processo é na Europa Ocidental onde esses pássaros em áreas rurais diminuíram de forma significativa provocada entre outros fatores pelas alterações na estrutura produtiva agrícola que promoveu uma queda no desperdício de grãos que servia de alimentos para as aves em questão. Ou seja, as elites, cúmplices do intenso processo de impermeabilização, o que provoca a redução de insetos e automaticamente a oferta de alimentos.
Aplausos.
O candidato da posição, perdão, oposição, após um refresco, sorriu para a platéia e sacou do bolso do paletó um pedaço de papel dizendo ser o mesmo um documento revelador da atitude do governo e sua conivência com o extermínio dos pardais. Principia ele:
- No Brasil existem cidades, da bancada do governo, que dizimaram praticamente 98% dos pardais, como o exemplo da cidade de Vale de Escalda Gatos, onde a população não queria ser importunada muito cedo pelos sons das aves e também por causa de sua permanência nas varandas das residências.
Um Ohhhhhhh generalizado e ensurdecedor tomou conta do auditório, o mediador pedia silêncio, o candidato da oposição fazia ouvidos moucos e prosseguia: O pardal chegou no Brasil em 1906. 200 exemplares foram importados de Portugal para o Rio de Janeiro, sob o pretexto de ajudar no combate a insetos transmissores de doenças. Alegrou a infância, a idade madura e a velhice de milhões e milhões de brasileiros, de todas as classes e credos. Em 1990 era visto em todo o território nacional. Mas, em virtude das ações deste governo....
- Injúria! - bradou a presidente - tenho aqui em mãos um documento, de Maria de Rio de Moinhos, escrito por ela própria, que ilustra bem a situação: os pardais estão a desaparecer em Portugal, parece que ninguém se dá conta. Aliás, os portugueses estão todos a dormir. Não falam do acordo ortográfico, nem do desaparecimento dos pardais... Como já ninguém acredita nos anjos-da-guarda, valham-nos os anjos-da-polícia!
Nesse ponto foi um Deus nos acuda, algumas pessoas não entenderam o que é que os portugueses tinham a ver com a questão, outros ficaram cismados com a palavra "polícia".
O mediador teve de bradar para que a ordem fosse restabelecida no recinto. Em questão de segundos o candidato da oposição retoma a palavra, explicando para o auditório e telespectadores que problemas estrangeiros tem pouca serventia para justificar as mazelas nacionais, e que o assunto do desaparecimento dos pardais é só a ponta do iceberg, servindo mesmo como uma cortina de fumaça para problemas mais graves, como o desparecimento da colerinha, o tico tico, a rolinha, pássaros que sempre frequentavam nossas praças, parques, escolas, o fundo de nossos quintais e que o mesmo malefício que vitimou essas aves poderá a qualquer momento, matar uma criança na rua.
(Imagem: John Ruskin, Peacock Feather, 1877, Aquarela, sobre vestígios de grafite)
O Debate sobre os Pardais
Pra consternação geral, alguém da platéia disse que o debate acontecia em data errada, que certo mesmo seria se tivesse tido ensejo em 20 de março, Dia Mundial dos Pardais.
Ninguém disse nada e a presciente, perdão, presidente, começou dizendo:
- Os pardais têm sua origem, ou seja, são nativos da Europa, Ásia e norte do continente africano. Essa espécie é bastante humanizada, uma vez que convive próximo aos seres humanos. Nos centros urbanos de diversos países do mundo os pardais se alimentam de restos de alimentos humanos e habitam em edificações tais como varandas, beirais de casas, lacunas de prédios, entre muitos outros lugares.
Aplausos.
Foi a vez do candidato da oposição tomar a palavra:
- Os pardais estão desaparecendo. Eles costumavam construir seus ninhos debaixo dos telhados das casas. Entretanto, alterar projetos arquitetônicos em assentamentos urbanos não deixa lugar para eles se aninharem.
Isso teve o efeito de uma revelação bombástica.
A presidente reagiu de modo incisivo, bradando que são as elites que estão exterminando com os pardais.
O moderador pediu moderação, embora o candidato tenha bradado, sem moderação, que diretores ligados a certa estatal foram negligentes e a radiação das torres móveis e o excessivo uso de fertilizantes químicos estão agravando o problema e foram identificados como dizimadores de pardais.
- Blasfêmia! - vociferou a presidente.
Sem se importar, o candidato prosseguiu:
- Os pardais têm sido muito negligenciados apesar do seu desaparecimento visível das áreas urbanas, bem como em localidades rurais. Isso se reflete no fato de que nenhum estudo adequado em todo o país foi realizado para contagem do número de pardais. O desaparecimento dos pardais tem sido amplamente censurado e as tímidas respostas por parte do governo, quando surgem, apresentam-se suaves, quase alegóricas.
- Infâmia - rugiu a presidente, que, amparada por assessores, tomou um gole de água e pediu a palavra.
- Não acontece só no Brasil. O declínio do número de pardais no mundo é proveniente da ação antrópica, um exemplo claro desse processo é na Europa Ocidental onde esses pássaros em áreas rurais diminuíram de forma significativa provocada entre outros fatores pelas alterações na estrutura produtiva agrícola que promoveu uma queda no desperdício de grãos que servia de alimentos para as aves em questão. Ou seja, as elites, cúmplices do intenso processo de impermeabilização, o que provoca a redução de insetos e automaticamente a oferta de alimentos.
Aplausos.
O candidato da posição, perdão, oposição, após um refresco, sorriu para a platéia e sacou do bolso do paletó um pedaço de papel dizendo ser o mesmo um documento revelador da atitude do governo e sua conivência com o extermínio dos pardais. Principia ele:
- No Brasil existem cidades, da bancada do governo, que dizimaram praticamente 98% dos pardais, como o exemplo da cidade de Vale de Escalda Gatos, onde a população não queria ser importunada muito cedo pelos sons das aves e também por causa de sua permanência nas varandas das residências.
Um Ohhhhhhh generalizado e ensurdecedor tomou conta do auditório, o mediador pedia silêncio, o candidato da oposição fazia ouvidos moucos e prosseguia: O pardal chegou no Brasil em 1906. 200 exemplares foram importados de Portugal para o Rio de Janeiro, sob o pretexto de ajudar no combate a insetos transmissores de doenças. Alegrou a infância, a idade madura e a velhice de milhões e milhões de brasileiros, de todas as classes e credos. Em 1990 era visto em todo o território nacional. Mas, em virtude das ações deste governo....
- Injúria! - bradou a presidente - tenho aqui em mãos um documento, de Maria de Rio de Moinhos, escrito por ela própria, que ilustra bem a situação: os pardais estão a desaparecer em Portugal, parece que ninguém se dá conta. Aliás, os portugueses estão todos a dormir. Não falam do acordo ortográfico, nem do desaparecimento dos pardais... Como já ninguém acredita nos anjos-da-guarda, valham-nos os anjos-da-polícia!
Nesse ponto foi um Deus nos acuda, algumas pessoas não entenderam o que é que os portugueses tinham a ver com a questão, outros ficaram cismados com a palavra "polícia".
O mediador teve de bradar para que a ordem fosse restabelecida no recinto. Em questão de segundos o candidato da oposição retoma a palavra, explicando para o auditório e telespectadores que problemas estrangeiros tem pouca serventia para justificar as mazelas nacionais, e que o assunto do desaparecimento dos pardais é só a ponta do iceberg, servindo mesmo como uma cortina de fumaça para problemas mais graves, como o desparecimento da colerinha, o tico tico, a rolinha, pássaros que sempre frequentavam nossas praças, parques, escolas, o fundo de nossos quintais e que o mesmo malefício que vitimou essas aves poderá a qualquer momento, matar uma criança na rua.
(Imagem: John Ruskin, Peacock Feather, 1877, Aquarela, sobre vestígios de grafite)