SABOR "MENTA-SOFRIMENTO"

Sol a pino do meio -dia em meio à cidade árida e mais um dia pela metade, vivido pela metade, já se esvaia pelas horas perdidas entre os incontáveis "vais e vens" anônimos da mesma avenida, dentre tantas rodas que rodam emperradas pela vida.

Calor , sol, poluição, seca e abandono holístico já não pontuam apenas a geografia do suor dos que labutam os sertões do nosso mapa sofrido, tão discursado e prometido, dentre mandacarus que reservam a última gota d'água para matar a fome e sede do último osso dum gado caquético.

Aqui o gado é outro, gado urbano, gado humano tocado à anestesia das dores crônicas, cada dor autóctone dum peito empedernido, perenamente aos moldes dos versos de Zé Ramalho, declamados por gente de todas as gentes, gado de classe A a Z, que inventa e reinventa a susbsistência mais dura que concreto armado.

Subsistência erguida cada vez mais abaixo das linhas dos mínimos alicerces!

Viver em São Paulo já não é simples questão de qualidade de vida que dinheiro possa comprar!

É surto psicótico cronificado.

É sofrimento alargado a tudo e a todos.

Chegou o tempo tão falado pelos nossos avós, tempo em que a escassez do tudo já ilustra a insensatez da raça humana para buscar o que não se precisa destruindo o que é vital para si mesmo.

Um gado de loucos...tocados a promessas que nunca nos chegam.

Posso afirmar que tenho um trunfo para escrever de gentes ecléticas porque gentes de todas " as grifes", de todas as idades, de várias sortes e dores, me tocam os sentidos há anos, eu as escuto, as asculto, as observo, as toco e as sinto também no seu silêncio gritante, e no meu mutismo não menos concreto, perplexo e legítimo; eu as ouço às suas dores altas e ensurdecedoras, inclusive nas esquinas urbanas das lutas que travamos todos, todos os dias.

Foi assim que ele, aliás é sempre eles, todos eles que iluminam minhas crônicas sociais, pessoas anônimas dos cruzamnetos surreais que me gritam enredos, de quem há anos ganho sorrisos algo furtados, como se fosse corrupção crônica dos sentidos, sempre na mesma hora e no mesmo lugar, como preciosos presentes de valor incalculável que os carrego comigo pelos meus textos, como pérolas garimpadas da vida.

São "out dors" humanos", empresas semáforos, artistas das ruas, sonhos encenados, equilibristas das horas e malabaristas do tempo, verdadeiros e legítimos artesãos da vida, todos eles, micorempresários de si mesmos que alimentam as estatísticas do crescimento social do extenso abecedário letrado, onde apenas nele se reconhecem como seres de letras...ou de dignidade, ao menos estatística.

São anúncios empregados na vida.

Seus movimentos são os mesmo há anos e o semáforo vermelho é o seu único milagre de vida.

É cor do sopro de sangue que teimoso, qual milagre, ainda circula nas veias.

Em fração de segundos duma vida inteira, eu os vejo escurecerem a pele sofrida sob o sol, sulcarem histórias mudas nas faces, fazerem lesões cancerosas como as fazem as políticas sociais falidas, franzirem a testa para despistar os flashes dos faróis da madrugada, branquearem suas têmporas à luz da violência caústica, claudicarem os passos senis nos reflexos que aos poucos lhes traem aos seus anseios , todos passos perdidos ali, sabe Deus em qual buraco do asfalto esquecido por todos que deveriam cuidar...de vidas perdidas.

E foi assim que hoje, ele, talvez já sexagenário, se aproximou da minha janela com o mesmo pedido:

" Vai aquele drops de menta refrescante, ô dona?"

Como o de sempre, aceitei a proposta, paguei-lhe indecorosamente pelo trabalho tão árduo e ali degustei um sabor diferente, nada refrescante, algo amargo e lírico, quiçá um "menta- sofrimento" de palatabilidade inexplicável, que sequer interessa ao mundo a quem escrevo.

Ato contínuo a rádio me informava da trágica queimada na Cantareira.

"Somos todos gado sedento de tudo", concluí.

De fato Zé Ramalho se eterniza pela minha cidade.

Pedi uma água ao homem, velho amigo do velho cruzamento, entornei um gole ávido pela garganta seca e apaguei meu perene incêndio interior...