Incrível, fantástico, extraordinário
A primeira coisa de que me recordo da fase de alfabetização é da Tia Neide. Sua voz doce e tranquilizadora, a paciência, a facilidade no ensino, em se fazer entender, a tez transparecendo calma e doçura. Sua jovialidade recém-saída da adolescência, e – aos meus olhos – uma beleza ímpar.
Depois, o burburinho dos coleguinhas, todos mais antigos de classe do que eu – ao menos era o que imaginava, embora a maioria estivesse iniciando àquele dia também – naquela sala de aula improvisada na área de serviço da casa dos pais da Tia Neide.
A grande mesa igualmente improvisada com tábuas de obra, forrada caprichosamente com uma toalha, e em vez de cadeiras, bancos confeccionados também com tábuas de obra.
Era costume na época, as crianças tomarem lições em escolas informais montadas nas casas dos explicadores, geralmente um complemento de renda. No caso da Tia Neide: comprar o enxoval para o seu casamento, que se realizaria em breve. Fato que eu desconhecia até então.
Um pouco antes disto me lembro da insegurança em enfrentar este novo e precoce desafio em meus curtos cinco anos de vida.
A paixão por Tia Neide não demorou a aparecer, coisas de menino. Devaneio ou algum tipo de carência infantil – muito comum nesta fase da vida - que levei a sério, na inocência peculiar a idade, imaginando ter algum tipo de reciprocidade.
Estas lembranças são “flashes” desordenados cronologicamente na minha mente. Ficam alternando datas, acontecimentos e lugares, embora sobre o mesmo assunto, não vêm em uma ordem lógica. Mas, na medida do possível, tentarei me fazer entender.
São sensações sentidas em um tempo em que a leitura ainda não fazia parte de minha vida. Um tempo em que somente tinha a capacidade de sentir, de vivenciar as coisas. Não conseguia ou concebia a ideia poderosa de registrar tais sentimentos, por meio da palavra escrita. Não conseguia ou concebia o quanto a leitura e a escrita seriam parte integrante da minha formação, da minha existência, da minha identidade, do meu ser.
Em outro “flash” já estou matriculado em uma escola regular, do município, com merenda e tudo. Deveria ter uns sete anos de idade, que era o mínimo permitido para o ingresso na primeira série.Vem-me em mente a estranheza do ambiente: maior e mais barulhento que a “escolinha” da Tia Neide, três ou quatro vezes mais crianças, a lousa enorme em comparação com a que havia na escolinha, a obrigatoriedade do uniforme, que não existia com tia Neide.
Foi – para mim ao menos – uma festa quando chegaram os materiais didáticos, os livros principalmente, aquele cheirinho de novo, a novidade das cores, das ilustrações, já despertando meu futuro interesse pelos livros e pela leitura.
Sensações, sensações….
Perdia muito tempo observando e tentando entender o sentido das ilustrações, as historinhas paralelas ao assunto, seus significados. Prestava atenção às linhas, aos traços.
Coisinhas simples que mexiam comigo, embora ainda não soubesse o seu verdadeiro significado.
E daquele tempo ficou a forte e marcante lembrança do dia que consegui concatenar uma frase inteira impressa em papel, ou em outras palavras: quando aprendi efetivamente a ler.
As lições – apesar do carinho, paciência e talento pedagógico da Tia Neide – eram chatas e maçantes. Mesmo sem perceber tinha chegado a conclusão que não gostava de estudar. Não queria aquilo! Mas o tempo, o grande senhor da razão, mostrou-me o quanto eu estava equivocado.
Minha mãe tinha por costume encerar o piso lá de casa – que era de cimentado liso e vermelho, ou vermelhão como ela costumava se referir. Após acabar de encerar, para proteger, ela “forrava” este piso com jornais velhos. O piso ficava bonito de se ver, embora brilhante e escorregadio.
Neste dia, um fim de semana, havia uma visita em casa e minha mãe estava na varanda a conversar. Eu, deitado no chão sobre algumas folhas de jornais, tentava entender aquele emaranhado de letras, que me confundiam e me deixavam tonto algumas vezes.
De repente, como em um passe de mágica, as palavras dançaram perante meus olhos, se desembaralharam e começaram a fazer sentido. E mais ainda: eram palavras que abalaram meu pequeno mundo, que me causaram estranheza, susto terror e….pânico .
Havia um colunista – já chegado nos anos, e famoso compositor de marchinhas de carnaval, chamado Almirante – em um pequeno jornal carioca, que escrevia uma coluna sobre assuntos sobrenaturais; A maioria locados em cemitérios, tendo suas ações sempre ocorridas a noite ou nas altas horas da madrugada.Com uma clareza impressionante recordo-me das primeiras palavras lidas, que eram o nome da coluna: Incrível, Fantástico, Extraordinário.
Comecei a ler o texto, ainda claudicante nas “soletragens” mas, entendendo perfeitamente todo o enredo que versava sobre o romance entre um homem e uma mulher que sempre se encontravam no entorno do cemitério local, e no “grand finale” o enamorado - após procurar e não encontrar por noites a fio – descobria por intermédio dos moradores locais que sua amada havia falecido já havia algum tempo.
Senti medo, senti pavor, arrepiei em todos os pelos do corpo, lágrimas de emoção ameaçaram jorrar dos olhos, mas consegui me conter.
Corri apavorado para os braços de minha mãe, que percebeu algo errado mas, absorta que estava na conversa, deu pouca atenção.
Já sob os braços protetores e seguros de minha mãe, constatei – apesar do medo que ainda sentia – que algo maravilhoso me ocorrera, que descobrira uma coisa mágica e poderosa.
Oras, como um pedaço de papel, um mísero pedaço de papel velho, inanimado, jogado ao chão, teve o poder de causar tamanho susto, tanto impacto, tanta emoção, tanto pavor?
Que coisa era aquela, que magia, qual truque? Será que eu ouvira a história e, enganado pensei ter lido? Mas o rádio e a TV estavam desligados, não havia ninguém na casa além de mim, minha mãe e sua amiga. Minha mãe e sua amiga estavam conversando animadamente na varanda, não havia a mínima possibilidade de terem me contado a história.
Sim! Não havia dúvidas, o jornal era o culpado! Aquelas letrinhas eram poderosas!
Munido de coragem e, com meu orgulho ofendido por sentir medo de jornais velhos, deitei-me novamente no chão e reli a coluna. Sentia medo, mas não tanto como na primeira vez, mas ainda era medo, susto sei lá. O coração batia descompassado e acelerado, não tanto pelo medo e sim pela maravilhosa descoberta.
Já não ligava mais para o medo. A curiosidade era mais forte, a sede do saber sem que percebesse já havia se instalado no meu íntimo. O que importava naquele momento é que havia descoberto uma força silenciosa que tinha o poder de emocionar, de mexer de abalar as pessoas.
Neste instante só conseguia pensar na Tia Neide. Em como ela ficaria feliz em saber de minha descoberta e de minha renovada vontade de estudar mais e mais, e ler e ler e aprender tudo o que pudesse aprender. Prometi a mim mesmo que na aula seguinte iria correndo contar a tia Neide. Ela seria a primeira pessoa com quem partilharia minha alegria e felicidade da descoberta de tão maravilhosa experiência.
Contei as horas e os segundos que teimavam em não passar, me parecia que haviam retirado a segunda-feira do calendário, que a terra havia sofrido algum dano em sua rotação, um hiato em sua engrenagem que causava um salto no tempo e fizesse não chegar a segunda feira.
Finalmente chegou o grande momento.
Vinha seguindo pela rua de mãos dadas com minha mãe, e ao olhar para o portão da escolinha, vi Tia Neide abraçada e beijando um homem, que deveria ser seu noivo.
Naquele momento tive minha primeira decepção amorosa
Apertei com força a mão de minha mãe. Senti raiva, senti ciúmes, franzi o cenho e, entrei na sala de aula com cara de “nenhum amigo”, Não dividi com ela minha grande novidade, ela não necessitava saber das minhas descobertas, não merecia partilhar minha alegria e minha nova e inseparável paixão, minha nova e inseparável companheira para toda a vida: a leitura!
Indiferente ao meu drama infantil, Tia Neide – até onde soube – casou, parou de lecionar, teve filhos e uma merecida vida feliz.
Naquele dia – o chegar em casa – todas as minhas dores de amores passaram como em um passe de magia. Não lembrei mais a “traição” de Tia Neide, dos meus ciúmes, da minha raiva ou do seu noivo. Estava feliz da vida e nada mais importava: havia sobre minha cama um exemplar novinho do novo livro ilustrado do Ziraldo, que iniciei imediata e avidamente a devorar em leituras que ocupavam todo o meu tempo livre.
Klem Machado 28/05/14