O dia ou a criança?
          
          A inversão dos valores é um fenômeno que vem acontecendo, na nossa sociedade, de um modo avassalador. Antes, até com aparência de transformações culturais, conforme a própria definição de cultura que é universal, mas também relativa; estática, mas também dinâmica... Contudo, esse dinamismo vem seguindo direções negativas; uma delas é a prelazia do poder econômico, fazendo-se sujeito dessas mudanças, desvirtuando essas transformações, quando a renovação de valores deveria ocorrer dialeticamente como nova adequação dos costumes a novas necessidades culturais.  Abruptamente nos surpreendem os contrários, ao redirecionarem valores a respectivos contravalores; o sentimento à indiferença; o sentido da vida à banalidade de viver; a suficiente utilização do mundo material à supervalorização do lucro; enfim, a importância da criança e dos seus direitos à comodidade do adulto; a felicidade dos pequenos à subjugação do contentamento dos grandes. Enfim, hoje é o dia da comercialização de presentes ou da criança; dos pais se mostrarem “bonzinhos” ou das crianças comemorarem, na família do dia a dia, carinhos e afeições?
          Nesse aspecto, nossa sociedade, sob os olhares de pouca reação ou de indiferença, com precisas palavras, tem sido cruel e perversa. Mostram-nos crianças esqueléticas na demonstração das injustiças sociais; soterradas pelas paredes das escolas e dos hospitais pelas bombas e mísseis da indústria armamentista; expostas ao sol do deserto nos campos de refugiados; e aquela morta, de olhos interrogativos, sob a poeira da destruição na Faixa de Gaza ou, aqui, dormindo sob pontes, marquises, ao relento.  Hoje, dia da criança, quem pode afirmar, mesmo com polêmicos acertos e desacertos, que a criança é bem tratada, em todos os dias da semana?
          Haverá tempo, o que não será muito distante, em que não se escutará o desejo de se reviver a vida de criança: “Ah! Meu tempo de criança”; desaparecerá o desejo de “ser menino eterno” (puer aeternus) porque poucas recordações haverá dos tempos felizes da infância. Levadas ao shopping para escolherem seus presentes, as crianças se educam a um novo paradigma de felicidade. E presentes para uma minoria, porque, no mundo das compras, a maioria não recebe tal artificial compensação... A cada dia do ano, devem-se às crianças, antes de tudo, amor, justiça, proteção e tudo aquilo do que são incapazes enquanto pequenas. Não se diferenciam filhas e filhos desprezados nos sofás das casas ricas dos filhos e filhas abandonadas com o nome de “criança de rua”.