Vítima da paixão.
Logo que Ela desceu do carro sentiu profundo vazio invadir o seu peito.
Ele, repleto e feliz, acelerou, e o carro partiu veloz.
O monte de areia cresceu na base da ampulheta.
Na mesma proporção a angustia se intensificou no peito Dela.
Nem sequer raiou o dia, insone Ela já se perguntava: - Será que Ele vai ligar?
A ansiedade atormentava, e o tormento transtornou o seu dia.
Evitou o café da manhã, padeceu o fastio do almoço, isolou-se com tédio a tarde inteira e o martírio avançou noite adentro.
Os pardais brigavam nas árvores ao redor. Era já outro dia que alvorecia. O terceiro, depois da despedida.
- Ele disse que ligaria, por que não ligou? Novamente Ela se perguntava.
- O desgraçado mentiu pra mim! comprovava.
A agonia continuava intensa e o pensamento obsessivo era o mesmo.
Levantou-se da cama descabelada, foi ao banheiro, evitou o espelho e sentou-se no vaso.
Esperou, esperou, apertou a barriga, espremeu os dedos na altura dos rins, nada.
Expeliu gases, mas não urinou, nem defecou.
O desejo não era fisiológico, era psicológico, justificou de si para si mesma.
Voltou pra cama e se deitou.
A inapetência consumia suas energias, e justo Ela, sempre tão cheia de desvelo.
Apática sentou-se na cama e lançou mão do barbitúrico sobre o criado mudo, destampou o frasco com desprezo, entornou na mão o que havia dentro e colocou na boca.
Para ajudar na engolição bebeu o sorvete derretido abandonado na tigela no dia anterior.
Em seguida deixou-se cair sobre o travesseiro, pegou o controle da TV, ligou o aparelho, mas os canais estavam fora do ar, todos. Desligou.
Deitada de costas sobre a cama mirou o ventilador no teto; parado, como as horas deveriam estar.
Fitou a estante e logo avistou a ampulheta ao lado dos CDs, silenciosa, enquanto, escoando de um compartimento para o outro, os grãos de areia mediam frações do tempo.
Fechou os olhos.
Às 17 horas Ele parou o carro em frente ao seu portão, buzinou duas vezes, desceu e pressionou o botão da campainha.
Dentro do quarto uma mosca que zumbia ao derredor pousou no nariz do corpo inerte que não dormia.
Já morta estava a suicida.