Certa manhã (ou os modos incertos de ver).

Depois de uma noite turbulenta e de sonhos tormentosos, um homem inflexível, encabruado, deixou a garagem da casa, dirigindo o seu carro, e só não se molhou com a chuva que caía forte porque acionara o controle dos portões que obedeceram ao comando, tanto para abri-los como para fechá-los. As paletas do para-brisa cumpriam o seu papel monótono e o seu vaivém repetitivo parecia prenunciar, na mente daquele homem, um dia negativo. Mais abaixo, fez a curva costumeira para a esquerda e as rodas do veículo lançaram, para o lado da sapataria, um considerável volume da água que empoçara na pista.

Nesse exato momento, um pedinte que, apesar de tudo, passara a noite em paz, despertava sob a marquise da sapataria. Fosse um dia de chuva e o mendigo levantaria com as suas roupas ensopadas. Mas o céu era de um azul incomum e a brisa morna, daquela manhã ensolarada, foi o que o retirara, apesar de tudo, dos seus bons sonhos.

O homem inflexível, encabruado, ainda olhará para um caminho encharcado da chuva que continuará a cair e lamentará o trânsito que o aguarda, mais adiante, na avenida central. O céu está enegrecido e despeja uma água cinza que desce, com todo o peso, de um céu de chumbo. Os sinais luminosos, que servem à orientação do trânsito, estarão todos vermelhos para ele e o relógio digital no painel do seu carro será um inimigo silencioso e eterno.

O pedinte se levantará, sob a marquise da sapataria, e saberá que, a considerar o número dos passantes que sairão às compras ou a passeio na claridade daquela manhã, a sua féria será um recorde. Então ele arrumará as suas tralhas no canto de sempre e, antes do inaugural pedido, ainda apesar de tudo, dará o seu ‘bom dia’ ao próximo.

O homem inflexível, encabruado, sabe, com a certeza do mundo, que o seu cliente o estará aguardando no escritório cercado de todas as razões possíveis no protesto que levantará contra o atraso nos negócios. Então ele, o homem inflexível e encabruado, irá tentar desculpar-se, como sempre faz, incriminando o desumano acúmulo de serviço. Mas nem mesmo o repicar dos trovões lá fora com a chuva que não terá cessado e que invadirá a reunião com o seu estrondo conseguirá atenuar a vociferação do cliente.

O pedinte de sorriso aberto, sob a marquise, talvez não abandone, no decorrer do dia, o local do seu ‘ofício’. E para quê? Além do mais, o seu lar é um lugar de portões abertos para o mundo, sem trancas ou controles, de onde avista flocos longínquos de nuvens brancas, e as visitas que recebe, sob a eterna marquise, jamais o deixarão só.

O homem inflexível, encabruado, olha na direção do pedinte sob a marquise da sapataria e, por causa da torrentosa chuva, o vê com as suas vistas embaciadas.

O pedinte, mais uma vez e sempre apesar de tudo, naquela nítida e reluzente manhã, o acompanha de longe com os seus olhos claros.