A Cartomante

A Cartomante







Ela disse que, antes de mais nada, era preciso que a gente batesse um papo. Sobre o que? Sobre qualquer coisa. Sobre várias. Sobre nenhuma. Só um papo. Perguntou-me sobre meus afazeres. Contei que escrevia a respeito da natureza, e forneci um fragmento, a título de exemplo: Hoje, sabe-se que as palmeiras que são encontradas na Amazônia estão começando a produzir sementes cada vez menores, sementes que têm menos probabilidade de reprodução.

Ela passeou pelo ambiente, alegando que um chá de ervas seria bem-vindo.

Estamos na sua casa, cujo interior assemelha-se em muito as incontáveis residências que aparecem diariamente na TV, não raro, em virtude de vicissitudes - na sala uns poucos móveis além do televisor de plasma e do computador. Nenhum livro em nenhuma estante. Nenhuma estante.

Numa das paredes, uma plaquinha com os dizeres: Igreja da União.

Retorna trazendo dois copos desses de requeijão, o chá fumega numa coloração esverdeada, nos acomodamos numa mesa de formica retangular, ela cantarola: "Suficientemente grande para ter criado o Universo... pequeno o bastante para viver em seu coração".

Depois de acomodar a seu lado uma bolsa grande, de pano, retira dali um baralho, e, ainda no modo conversa, me conta ajeitando as cartas que oitenta e cinco por cento da humanidade acredita na vida depois da morte.

- Engraçado, não? Dezenas, talvez centenas de religiões, nascidas em diferentes épocas e lugares da história, com esse "algo" em comum.

- Isso é um tarot?

- Não - responde ela, com olhos azuis semelhantes a safiras e cabelos ruivos - é algo que desenvolvi ao longo dos anos. Digamos uma ferramenta de orientação. Representa os 352 planos ou dimensões a partir da linha ou Trono Linear da Criação, e tudo que esteja entre isso. Você está aqui por causa de......, bem.... Você quer a atenção de alguém, mas não é correspondido.

Mexi com os lábios, não automaticamente, depois de um tempo, e pensei em voz alta que o amor consanguíneo deveria trafegar nas duas mãos, e, ainda que ligeira, diáfana, alguma manifestação, ao menos, deveria surgir. Mas que não viera por causa disso.

- Ainda bem - sibilou ela olhando para o alto enquanto mexia as cartas, como uma cega - força alguma no mundo pode obrigar a correspondência da afeição. Então por que vieste?

- Porque me disseram que você é muito boa no que faz.

Ela sorriu com prazer largo, cheio, continuando a mexer com as cartas e a olhar para nada. Daí suspirou por um lance de segundos e dispôs algumas cartas na mesa. Com o dedo indicador da mão direita apontou para a carta da esquerda, dizendo:

- Ah, as entidades no holograma quântico estão pronunciando que até hoje a fórmula tem sido: sobrevive o mais dotado de espírito belicoso. Isso vai mudar. Sobre o que mais você escreve?

- Fiz o primeiro capítulo de uma novela, começa assim: uma mulher de meia idade, grandalhona, chega no edifício das Nações Unidas de madrugada para uma reunião de emergência. Ela principia dizendo: vim fazer uma súplica, meu país está morrendo.

Ela encolheu os ombros, sempre com as cartas na mão.

- Muito melodramático.... - externou - nada está morrendo, percebe? Hummmmm, é que o asteróide que está passando perto da Terra é um amplificador de envergadura, some-se a isso os Ventos Solares e o Equinócio, e assim temos exageros que acentuam mais ainda as forças planetárias. Tudo pode parecer mais extremo nestes dias, por causa das cargas, das atividades voláteis presentes no ciclo. Vejamos o que as cartas falam acerca das suas qualidades. Ah, sim, repare: brilham intensamente com a energia da quietude.

Ficamos quietos, eu com meus botões, ela com o baralho. Algumas cartas tem números, outras, figuras, nada que eu já tenha visto e tampouco nada digno de nenhum suspiro exclamativo.

Ela tamborila no tampo de formica, e diz pausadamente:

- Se o homem não tiver paz no coração, os arados se transformarão em armas.

- Isso está nas cartas?

- Não - responde - está no Eclesiastes. Me desculpe se pareci um pouco crítica com o primeiro capítulo da sua novela. Como termina? O que a grandalhona pede para as Nações Unidas?

- Um milagre - retorqui.

- Ah.... - fez ela - bem, nosso encontro está se esgotando. Sabe, os gregos conceituaram o tempo em Cronos, vide o relógio, e Cairos, o tempo interior de cada ser, pode-se dizer que é o eterno agora. Escolha uma carta.

Escolhi. Ela mexeu na cabeleira ruiva, zumbiu um longo hummmmmmm, e então explicou:

- O número um representa novos inícios em termos numerológicos. Está difícil para você entender as coisas processuais, espirituais e históricas acontecendo ao seu redor. Há uma ancoragem acelerada, uma mudança magnética no núcleo e uma combinação de frequências que eu diria ser, no mínimo, alucinante. Ai, ai, isso que vocês chamam de experiência de vida rotativa na Terra, sem recordações ou lembranças de viagens anteriores, passa rápido demais.

Ela se levantou, dando por encerrada a sessão. Me estendeu uma mão carnuda que demorou um tanto segurando na minha, daí me disse:

- Deseje, isso é fundamental, hein, você deve desejar deixar ir embora tudo, repito, tudo aquilo que você pensa que sabe neste momento.




(Imagem: Romina Ressia photography)


 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 07/10/2014
Reeditado em 01/12/2020
Código do texto: T4990815
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