A Dona das Coisas

A Dona das Coisas

Beatriz Zanon

Meia luz. A menina translúcida estava sentada na escadaria de pedra. O vestido carmim havia perdido parte de seu comprimento com o passar dos dias de lamúria. Não mais falava. Guardava cada fiapo de voz para gritar seu amor pelas águas. O verde dos seus olhos era o único resquício da tênue cascata que descera através deles outrora.

Pérolas faiscavam no firmamento que era um breu que só. Uma borboleta tingia a parede com suas escamas. E não se ouvia uma palavra sequer. O mundo era novo e de se admirar. E com ele se foram memórias, os risos e a cabana. Viver não era nada além de uma brisa sutil no canto dos olhos.

A fraca pulsação já não era sentida nem mesmo nas pontas dos dedos e os cabelos de seda dilataram até que parecessem fios de cobre torcidos. Não era um jogo, não era um adeus. Era somente sua miserável existência, tão amarga e inconspícua que o peito comprimia-se dentro do tórax, quase, quase, deflagrando. Mas ela ainda tinha cem anos.

As fábulas não eram atraentes, as fadas vitorianas não possuíam asas e os infortúnios da virtude não lhe pareciam sádicos. Era a filósofa que perdera seu mundo. Era um sorriso torpe nos lábios de Augusto. O badalar de sinos que dobram por algo, por alguém. Forte como uma espada e desprezível como a pedra corcunda que esculpia sua escadaria para o céu fora de órbita.

Ela era romântica. Não foi amor de Dante. Não foi inspiração de Leonardo. Não foi Madame de Flaubert. Foi apenas ela. Em busca de um templo perdido numa ilha remota, desconhecida, enquanto trabalhava no mar. Não precisava de um cavalo para que sua triste figura despontasse à luz de milhares de esplêndidos sóis. Não era facilmente decifrável com um só código, tampouco rija como uma pedra filosofal.

As bruxas anunciavam sua hora de começar uma entrevista. Ela olhou para as camélias e para o gato preto que passeava ao lado de uma dama. A flor da neve se abriu e se deixou sorrir para um pequeno príncipe que jogava com uma traça livresca alemã. O robô iluminado juntou-se a eles para discutir o futuro de um anel perdido em algum ponto entre o velho e o mar.

O tempo passou. Talvez uma noite, apenas. Talvez mil e uma. Ninguém conhecia seu segredo. Nem mesmo o herói sem caráter que sentara em sua cadeira de prata para desfrutar de um sonho de verão. A vida era bela e ao longo de seus doze distintos trabalhos concluiu relutantemente que a felicidade permanecia clandestina, intocada e tão cobiçada quanto à canção do exilado. O ensaio terminaria ao despertar da lira, quando a primavera completasse severinos vinte anos.

Antes de fechar seus orbes para sempre, viu que um homem chegava de barco. Ele observava todos os seres, todas as criaturas, todas as formas que compunham o cenário que englobava a sua história milenar. O homem a fitou curioso. Então ela se deu conta: fora do ar ou não, ela continuava a se chamar Literatura.

Beatriz Zanon
Enviado por Beatriz Zanon em 07/10/2014
Código do texto: T4990240
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