Com fome, sem nome.

Sentei na "calçada" do Iguatemi pra ligar pra minha irmã e descansar um pouco. Fiquei ali, com o olhar perdido, ouvindo o "tum... tum... tum..." distante do celular, mas sem me concentrar no que fazia. Foi quando entraram no shopping duas pessoas que me chamaram a atenção: uma senhora, que andava com muita dificuldade, e uma garota que a acompanhava. A senhora gritava de dor, e a garota parecia assustada, olhava apenas pro chão e a carregava com muita paciência. Fiquei observando a cena por um tempo pra ver aonde elas iam, já extremamente incomodada com a dor daquela mulher. Via-se no rosto dela que não era só dor física, e algo no seu semblante comovia, de fato. Tanto que não consegui desviar o olhar daquelas duas mulheres. A garota acompanhou a senhora até o banco mais próximo, de onde saíram duas jovens para que ela se sentasse. Assim que a senhora se sentou, a garota saiu praticamente correndo. Não olhou para trás, não pediu ajuda, não disse nada à senhora nem a ninguém. Fiquei observando curiosa, intrigada e incomodada, imaginando que ela voltaria. Mas não voltou. A senhora continuava gemendo e gritando de dor, dizendo coisas que ninguém entendia. A expressão dela, sinceramente, me tocou. Era de sofrimento mesmo. Eu não consegui ignorar aquela mulher. As pessoas passavam, olhavam, algumas paravam e tentavam saber o que ela sentia. Mas no fim as pessoas se entreolhavam com cara de interrogação e iam embora. Durou pouco o meu período de conflito interno em que a gente se sente incomodado, sabe que deve tentar ajudar, quer ajudar, mas sei lá por que cargas d'água continua parado, se perguntando se deve sair da nossa zona de conforto. Quando constatei que a garota não voltaria e que aquela mulher estava, sim, sozinha, me levantei e fui falar com ela. Não consegui saber exatamente o que ela sentia, porque ela se articulava muito mal. Mas sei que suas roupas eram velhas e sujas, tinha poucos dentes e os que tinha estavam muito danificados, que suas pernas estavam extremamente inchadas e, principalmente, que ela sentia dor e que estava com fome. Perguntei como ela ia pra casa, onde ela morava, me respondeu que morava em Brotas e que ia de ônibus. Perguntei o que ela tinha ido fazer ali, ela respondeu, como quem tenta se lembrar, que tinha ido comprar arroz, feijão e macarrão. Mas quando abriu a bolsinha de dinheiro, não parecia ter mais do que R$4,00 ali. Uma outra mulher estava do meu lado e vi que se sentia tão incomodada quanto eu, e pelos mesmos motivos. Primeiro, claro, pela situação daquela mulher, visivelmente muito pobre, doente e sozinha; e segundo, pelas madames (uma, em especial) bem vestidas, perfumadas e cheias de sacolas nas mãos, que se levantaram do banco pra não ficar ao lado dela. No fim, ela ficou sozinha no banco, enquanto as madames escolheram ficar de pé segurando as sacolas, pra não ficar ao lado dela. Depois ouvi da mulher que estava ao meu lado, que a madame saiu porque a senhora tinha pedido dinheiro a ela. Logo depois uma menina também saiu porque ela pediu um pouco do milk shake da menina, provavelmente falando muito baixo, porque eu nem ouvi. Conversei rapidamente com a mulher para ver se tinha algo que pudéssemos fazer. Não adiantava chamar a SAMU, não era emergência. Eu não tinha como acompanhá-la a um hospital. Ela dizia ter mãe e uma filha, mas não soube nos dizer o telefone, se é que elas têm. Eu me senti de mãos atadas, até que me toquei do óbvio. Aquela mulher estava morrendo de fome. Perguntei se ela queria comer, e seus olhos brilharam (sem nenhum exagero). Perguntei o que ela queria comer, ela me disse "arroz, macarrão e carne". Disse a ela que esperasse, e fui comprar. Não tinha macarrão, voltei com uma quentinha de arroz, feijão tropeiro e carne assada. Ela mal me esperou abrir a sacola, e não conseguiu me esperar abrir o pacotinho dos talheres descartáveis, começou a comer com a mão. Aquele momento foi pra mim, sem sombra de dúvidas, o momento mais forte e significativo dos últimos dias. Meu coração doeu, e ao mesmo tempo se aliviou com a alegria que aquela mulher visivelmente sentiu ao começar a comer. Não suportei ficar ali pra ver, e me despedi dela. Saí com a alma pesada, com um sentimento de impotência, ou talvez de decepção. Será que eu fiz o que podia ter feito? Ao mesmo tempo, meu Deus, quanto vale uma vida? Eu saía do meu expediente na Central do Carnaval, uma empresa que vende luxo, que vende futilidade, e que é milionária por isso. Uma camisa, um pedaço de tecido colorido do qual eu entrego dezenas por dia, é vendida, no mais extremo dos casos, por quase 2.000 reais. Quanto vale um prato de comida? Menos de 15 reais eu paguei. E não devo ter matado a fome dela não. Matei por hoje, por algumas horas, na verdade. E não fiz mais do que a minha obrigação. Mas e amanhã, será que ela vai ter o que comer? Passei o restante do dia me lembrando dela, da expressão de dor que trazia e do sorriso que eu arranquei quando lhe dei o que comer. Deveria ter me sentido bem por isso, mas me senti um lixo. O que eu tenho de melhor que ela? Por que eu mereço mais? Por que a dor dela é menos importante que a minha? Será que minha vida vale mais que a dela? Será que a vida dela vale alguma coisa pra alguém? E aí me dei conta de um detalhe bobo, mas simbólico. Eu não sei o nome dela. Eu não perguntei. E entendi que o nome dela sequer importa. Quem vê, de fato, aquela senhora? Quem notou que ela estava ali? Quem notaria, se ela não tivesse gritado? Eu notaria? Muito provavelmente, não. Se ela estivesse deitada na rua, na calçada, sentindo dor mas em silêncio, quem saberia? Quem se importaria? Ninguém. E a senhora sem nome segue desconhecida, ignorada, invisível. Hoje, eu enxerguei. E amanhã, será que alguém vai ver?

(2012)

Marina Borges
Enviado por Marina Borges em 07/10/2014
Reeditado em 15/04/2020
Código do texto: T4990107
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