O DIA QUE DIRIGI UM PUMA
O DIA QUE EU DIRIGI UM PUMA
Li num livro do Fernando Sabino: "Há uma diferença entre lembrar e recordar. Recordar é reviver, lembrar é apenas saber."
Então vou recordar que quando eu tinha dezoito anos, já sabia dirigir. Todo jovem tem pressa de viver, de ter tudo, especialmente um carro. Cada amigo tinha uma preferência: Ronaldo adorava o Passat, Neto preferia o Opala e eu gostava do Puma, muito embora o Maverick também causasse desassossego a todos. Tempos difíceis, o ônibus era minha condução. Para um simples aprendiz de ourives, restava sonhar.
Havia um vizinho, um homem de poucas palavras. Morava com a mãe, ambos de aspectos carrancudo. Tinha só trinta anos e parecia um velho.
Aos domingos eu gostava de me sentar no muro da nossa casa pra ficar vendo a vida passar. Foi quando ele apareceu, o vizinho da terceira casa, no seu insuspeitado jeito solitário. Ele tinha um carro que eu achava bonito, uma Belina II de rodas esportivas. Porém, num domingo posterior, apareceu com outro carro e a terra parou para mim. Ele estava guiando um Puma GT. Fiquei hipnotizado: Contei cada detalhe do veículo: capota preta aberta, rodas de aro dourada, lataria vermelha, que não era um vermelho qualquer, mas tão forte que parecia pulsar. E o ronco do motor...ah, não dá pra esquecer. De repente ele desceu do carro e deu de encontro com meu olhar, que devorava a cena. Súbito, reagi: tentando disfarçar, dei um pulo do muro buscando o retorno à realidade. "Bonito carro" ainda falei e ele respondeu, contente: "Acabei de trocar pela Belina". Entrei pra dentro de casa contando os anos: quando tivesse a idade dele, teria o meu Puma, prometi a mim mesmo. Alguns dias se passaram e eu não conseguia tirar meus olhos da direção do carro do vizinho. Acho que ele percebeu: No domingo seguinte, sem mais nem menos, me pediu um favor que pensei recusar: a velha companheira preguiça falando por mim. Acabei atendendo, queria ficar perto do Puma, e o ajudei podar a árvore em frente da sua casa. De tão agradecido e por ter notado que eu não tirava os olhos do carro, falou, meio sem jeito: "Quer dirigir?", a resposta veio num sorriso que não consegui retirar do meu rosto juvenil. "Tem gasolina?", ousei perguntar, ao que ele acenou positivamente, já jogando as chaves nas minhas mãos. Poucas vezes me senti tão importante. O volante deslizava entre meus dedos, o engate na marcha certa, a respiração empolgada, o pisar no acelerador. São nesses pequenos momentos que constatamos quão doce é a vida. E o motor do Puma roncava, dando asas a uma águia nova, que começava a voar, o primeiro mergulho no despenhadeiro, rasante, reto, para na sequencia, cabeça erguida, peito estufado, voltar triunfal rumo ao horizonte. Hoje já não tenho pressa e nenhum desejo de ter um Puma. Engordei, envelheci, não caberia dentro dele, me sentiria mal, com dor na coluna. Resta a lembrança daquele dia bom, que tive em minhas mãos o carro que tanto gostava, um dia apenas, poucos minutos de um passeio inesquecível.