A DESCONFIANÇA PODE POR FIM UMA AMIZADE
Simão Pedro costuma sair de casa indo até a calçada todos os dias exceção naqueles de tardes chuvosas. Senta-se em sua cadeira de palhinhas permanecendo ali balançando por mais de uma hora. De olhos semiabertos, assim mesmo, fica observando o vai-e-vem das pessoas, dos animais domésticos que cruzam a pequena e estreita rua; o trânsito das bicicletas, além da circulação de carroças movidas a mula com seus condutores perversos gritando e açoitando os indefesos animais, com o objetivo de fazê-los correr.
Certo dia, numa dessas cenas, pela primeira vez, alguém ouve o grito de Simão “não faça isso com esse pobre animal ! Se o bicho pudesse se defender você não judiaria tanto assim !”. Afora um incidente como esse permanece ali por que se sente bem. Não gosta de novela de televisão e quando alguém lhe pergunta o porquê diz “não perco o meu tempo assistindo imoralidades”. O contato com as pessoas que passam é o seu divertimento.
É também nesse período de “boca da noite” que passa o vendedor de iguarias, guloseimas que complementam o jantar dos moradores da comunidade. Ouvido de longe os seus gritos. De tanto repetir o que oferece a venda já passa com a voz rouca. Só no percurso da rua se vão aproximadamente uns quinhentos metros. Pelo horário os moradores associam a voz do vendedor ao produto que vende. Os que querem ou podem comprar esperam na calçada de casa.
- T-a-p-i-ó-c-a ... c-u-z-c-u-z ... passando em sua porta ! Saborosos e fresquinhos ! Tenho também beiju e grude, “tudinho feito agora de tarde”. Oferece o vendedor.
Simão assiste toda aquela cena. Aqui e ali esboça um leve sorriso.
De repente, correrias, vozes agudas, gritos ensurdecedores. São as crianças e jovens que voltam da escola, alguns de bicicleta outros a pé.
Os mais velhos ao passar cumprimentam ...
- Oi Seu Simão ! Boa noite Seu Simão !
E Seu Simão com voz mansa e terna acompanhada de um sorriso responde a todos.
- B-o-a N-o-i-te !
Nessas paragens essa figura é tida como um conselheiro. Aos que se aproximam pedindo orientação de como fazer para resolver um problema tem sempre uma palavra de conforto. Uma pessoa muito querida, da criança ao idoso.
Numa tarde-noite do mês de setembro em pleno verão, de repente para em frente à casa de seu Simão uma moça de aproximadamente trinta anos de idade, solteira, bonita. Sobe à calçada e aproxima-se do conselheiro o mais que pode. Introspectiva, mostrando-se bem diferente daquela pessoa extrovertida como é conhecida. Esquece até de cumprimentar o vozão. Fato que há muito não acontecia, agacha-se, aproxima a boca ao ouvido dele e sussurra-lhe:
- Seu Simão, o senhor tem sempre uma palavra amiga para as pessoas aflitas. Por isso peço que me ajude resolver um problema !
Faz uma pausa a fim de refazer seu estado de equilíbrio emocional.
- Fala Guiomar ! Só posso te ajudar se você me contar o que está sentindo agora !
- Tudo bem.
Respira fundo e começa a relatar seu drama.
- Não sei se o senhor está lembrado do meu amigo Rafael, vizinho nosso ! Aquele jovem moreno, alto, que diariamente passa comigo neste horário e juntos saudamos o senhor ? Quero adiantar que ele não é meu namorado ! Pois bem. “Faz uma pausa e continua”.
Hoje, pela manhã, quando eu saía de casa para tomar o ônibus que me leva ao trabalho, cumprimentei-o como de costume, porém não fui correspondida. O fato me surpreendeu. Fiquei inconformada por motivo da sua desatenção, por isso, passei o dia todo pensando a respeito. “O que esse cara pensa que é ? Porventura tá pensando que é o rei da cocada preta ?”
Seu Simão interrompe.
- Já procurou questionar-se a respeito desse acontecimento ? Na noite anterior você não teria colocado alguma palavra ou mesmo feito algum gesto que o fizesse demonstrar, hoje, esse comportamento estranho ?
- O dia todo refleti sobre isso a fim de buscar a causa mas, nada encontrei que pudesse justificar o estranho comportamento do meu amigo.
- Então aguarde. O tempo se encarrega de por as coisas em seus devidos lugares, espere. Com certeza oportunidade surgirá para que você tenha como dissipar sua dúvida a respeito. Se não puder esperar com paciência procure-o e peça esclarecimentos.
- Ah ! Isso jamais farei ! Nada fiz que o magoasse ! Ele que me procure !
No dia seguinte e no mesmo horário ...
- Seu Simão, boa tarde.
- Boa tarde, moça bonita !
Guiomar estava calma.
- Seu Simão, ontem mesmo, depois da nossa conversa procurei refletir a respeito do seu conselho a fim de que pudesse dormir em paz. Assim que terminei minha oração procurei fazer uma profunda reflexão sobre as palavras que ouvi do senhor – “o tempo se encarrega de por as coisas em seus devidos lugares”. No momento veio em meu pensamento “se conheço bem o meu amigo acredito que ele não correspondeu ao bom dia por que devia estar meio estonteado por força de algum problema”.
Pois bem, hoje pela manhã, por telefone ele me pediu desculpas por não haver correspondido a minha saudação. E que não tinha se sentido bem ao perceber a desatenção para comigo. Fiz mau juízo. Peço desculpas ao senhor por haver enchido sua cabeça de minhocas. E rogo perdão a Deus pelo julgamento apressado. Mais um aprendizado.