MÃO SUJA

Imagino que eu era uma pessoa mais ou menos teimosa quando criança. Tinha por certo uma personalidade marcante.

O teimoso normalmente se recusa a aceitar as evidências, e comigo acabou acontecendo isso uma vez.

Meu pai um dia contou um caso interessante que aconteceu comigo, e eu me lembro ainda da cena.

Deus por certo quando começou a pintar o planeta errou na dose de tinta ao colorir a terra na região de Arapongas. É de um marrom sangue de boi amanhecido. É tão grudento, mas tão grudento que acho ser pior que o capeta tentando o vivente pecador.

A terra daquela região deve ter alguma substância ácida, pois quando criança, nossos pés, pelos folguedos descalços, viviam encardidos com sulcos doloridos quase sangrando.

Minha mãe sempre dizia:

- Não brinquem descalço nesta terra!

Criança obedece?

Só quando dorme.

Muitas vezes minha mãe ficava endoidecida com minha desobediência, e rolava então umas chineladas doidas na bunda. As chineladas tinha a função de avivar assim o cérebro, lá na parte das lembranças, das coisas que podia e das que não se podia fazer.

Era sintomático, depois das chineladas amorosas recebidas, lá ia eu fazer exatamente o que minha mãe não gostava ou que tinha proibido. Fazia por birra ou por vingança, nem sei. Ironicamente eu a provocava chafurdando na terra que Deus errou na receita da cor. Enxovalhava-se todo em represália ao castigo recebido dela.

Minha mãe não se dava por vencida.

Mais chineladas na bunda, e aí eu me rendia num choramingar ranhoso, grudado nas pernas dela.

A arma da criança é saber precisamente o que os pais não gostam, para usar exatamente isso como forma de contestação, ou para simplesmente conquistar alguma coisa.

E eu continuei por muito tempo tentando conquistar isto ou aquilo, sujando meus pés e minhas mãos naquela grudenta terra vermelha.

Certa feita, fomos visitar pessoas ligadas ao nosso sangue, as quais meus pais chamavam de parentes. Elas moravam em São Mateus.

A viagem de vapor de Porto Amazonas a São Mateus durava uma noite. Para mim era quase um século.

Convenhamos que para uma criança tanto tempo presa, ou no camarim ou sendo monitorada no convés, ultrapassa o limite da paciência.

Pouco santo que era, devo ter aprontado poucas e boas nesta viagem, e recebido algum corretivo um pouco menos santificante.

O vapor atracou finalmente no porto.

Eu, preso pelas mãos cuidadosa e atentas de minha mãe, desci lépido pelo trapiche já com o plano infernal arquitetado.

- Agora vou à desforra total! Acredito que, raivoso naquele momento, pensei.

Imediatamente me desgrudei dela, e para mostrar toda minha força, e me vingar me joguei feito um doido naquela terra, esfregando sofregamente minhas mãos nela.

O povo parou por momentos imaginando que fosse a apresentação de alguma performance.

Minha mãe gargalhou, num gargalhar gostoso acompanhado de meu pai.

Como o riso é contagiante o povo riu ruidosamente também, principalmente quando me levantei, e assustado verifiquei que minhas mãos continuavam limpas.

Detestei aquela terra argilenta que não me sujou as mãos; Deus, com certeza, descuidado esqueceu-se de colocar nela a tinta vermelha.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 28/09/2014
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