O Som da Honra - Capítulo I

O dia estava ameno, uma corrente de ar fria fazia com que meu negro cabelo esvoaçasse sobre o rosto. Com minha guitarra, Noite, em mãos, praticava antigos solos, criava novas melodias, passava horas sob a floresta tentando encontrar uma combinação que pudesse fazer com que minha cidade me amasse e os inimigos dela me temessem, notas capazes de congelar a mente, fazer cessar a respiração e fazer com que meu nome fosse lembrado como o de meu avô. Uma combinação semelhante foi um dia realizada por Andruim, pai de meu pai; a sequência de notas morreu trancafiada em sua mente, mas ainda tenho esperança de conseguir reproduzi-la ou mais que isso, criar uma nova.

Naquela manhã fiquei horas treinando, o sol já se encimava e tudo que consegui foi umas tantas queimaduras nas mãos. Sentei-me na relva úmida e senti minhas pernas agradecerem, toda manhã após esgotar-me, ali deitava; apesar de sujo, o lugar era aconchegante, um espaço sem árvores, em meio a uma infinidade de árvores negras. Árvores altas, baixas, negras azuladas e esverdeadas. Não havia um lugar em todo o mundo que eu me sentisse mais à vontade que lá. Porém toda a minha tranquilidade foi perturbada por um som de galhos quebrando-se próximo às árvores do Norte, e logo identifiquei um vulto saindo da floresta e se aproximando.

- Eldrick, é você aí? - indagou uma doce voz feminina, mas antes que eu pudesse responder a garota percebeu de quem se tratava e a doce voz se transformou apenas em voz. -Aah, é você And, pensei que fosse o seu irmão. Sabe onde ele poderia estar?

And era como a maioria das pessoas me chamava, mas meu nome real é Androrty e preferiria que me chamassem assim. Não era raro uma pessoa confundir outra na cidade de Guitana, nossa cor oficial é preto e todos têm de usá-la. Era até mais simples assim, visto que nossas florestas sempre foram ricas em árvores negras; os caçadores capturam os animais, tiram a carne e tingem a pele com a tinta extraída das árvores.

Mas no caso do meu irmão e eu era muito mais recorrente pessoas nos confundirem, sou um ano mais velho que ele, mas somos incrivelmente parecidos. Isto me desagradava bastante, a todo momento pessoas nos confundiam e por isso deixei minha barba e cabelo crescerem até ficar parecendo uns cinco anos mais velho, no entanto, ainda assim nos confundiam e isso fazia com que meus dedos desejassem tocar a canção da morte para eles, mas é claro que depois eu tentaria criar a da vida, por arrependimento talvez.

- É, sou eu, Androrty. - disse a ela. -Ele deve estar na Praça Guitarra de Prata, não Kennie?

- Deve estar mesmo, foi que ouvi uns zumbidos aqui e decidi conferir se não era seu irmão que zumbia. - dizia Kennie claramente tentando me afetar. - Você não larga essa guitarra, por que não está na equipe dos guitanos?

- Talvez eu não esteja só por não querer estar. - respondi, na verdade eu queria, mas ficar patrulhando gastava tempo e isso não me sobrava. - Desde que a grande maioria da minha família partiu para o país da Flauta, tenho ficado em casa cuidando da minha prima Ana, ela está crescendo e o meu tio me deixou como responsável da pequena.

- Você e a Ana ainda têm esperança de que os Finny voltem?

Assenti. Finny é o nome de minha família e somos os mais nobres de Guitana, tudo em mim acreditava que estavam ainda vivos, mas comentários como o de Kennie me entristeciam.

- Eldrick diz que acha que eles não tornarão à Guitana. - insistiu ela.

Há quatro anos um dos nossos guitanos andantes voltou para a cidade e jurou que os senhores do país da Flauta haviam sido dizimados por algum outro povo, que por algum motivo apenas queria a extinção dos flautas, se assim fosse o grande e rico território deles estaria apenas esperando alguém por tomar posse. Androme, o senhor de Guitana, meu pai, viu a oportunidade de expandir Guitana à um verdadeiro reino. Convocou todos os Finny para uma reunião e resolver o que fazer, a resolução foi que os outros cobiçaram ainda mais a ideia de ter em mãos a riqueza de séculos que aquele povo acumulava. Então minha família partiu ao Sul deixando em Guitana do nosso sangue apenas eu, meu irmão, minha prima Ana e um tio que é mais jovem que eu, não podíamos ir porque nosso treinamento no caminho da guitarra não estava concluído. Na época do êxodo eu tinha dezesseis anos.

Para chegar ao território da Flauta era preciso andar em terras de baixinos e isso era extremamente perigoso, o povo de lá é cruel e um grupo pequeno era suficiente para tirar a vida de todos de um acampamento desprevenido, com as ondas graves que fazem com que fiquemos tontos e os enormes contrabaixos que usam como marretas para fazer dormir os tontos. Por essa razão muitos diziam que minha família havia perecido antes mesmo de chegar lá, outra porção dizia que os flautas nunca saíram de seu país, porém ainda havia os que diziam que o território já teria sido tomado por outro povo. A minha especulação e a de poucos de Guitana era a de que eles tomaram o território e mandaram mensageiros nos avisarem, mas eles talvez tivessem sido pegos por baixinos e os próximos enviados depois deles tivessem sofrido do mesmo mal.

De todo modo, não podíamos mandar ninguém ir à Flauta conferir, nossa cidade estava em uma situação frágil e precisávamos de guitarras mais que nunca, as forças inimigas vizinhas só cresciam, segundo relatos, e uma invasão era evidente. Por isso eu treinava todos os dias pela manhã. Guitana é cercada por Piano e por Contraterra, o grande território baixino.

- O que quer com Eldrick, Kennie? - perguntei curioso, ela não podia estar gostando dele, eles não combinam nada, pensei.

- É assunto nosso. - a garota nunca respondia minhas perguntas e quando respondia não era algo direto. Mas eu tinha poucos amigos e não podia dar-me o luxo de discutir coisas sem importância. Minha amizade com ela se tornou maior quando começamos a estudar juntos o caminho da guitarra, com o mestre Guitano Alock.

- Na penumbra sua guitarra fica mais atraente, And. - disse ela mudando de assunto e encarando Noite. - Quem a fez?

- Meu avô, na verdade não foi feita pra mim, ela era destinada a Eldrick, mas quando ele viu que o metalista Doff estava fazendo novas da madeira da lendária árvore negra; reivindicou uma delas pra ele e meu avô me deixou ficar com essa. - respondi.

Metalistas eram os responsáveis por engendrar guitarras.

Noite tinha esse nome por ter sido feita à noite, em uma única noite! Normalmente demoravam-se dias para uma boa guitarra ficar pronta. Minha guitarra já fora mais bela, não se via mais o preto de antes, agora só restara um cinza escuro quase distante de preto. Ela não tinha detalhes, nem ornamentos como muitas, mas uma vez eu a deixei cair no chão, isso a causou um profundo arranhão. Fiquei pensando no que faria pra resolver o problema, depois de momentos de reflexão a resposta parecia clara, eu só teria de continuar o arranhão desenhando algo e então ninguém nunca descobriria.

- Entendi, espero que ainda derrube muitos inimigos com ela. - confinou Kennie de um modo gentil. Ela era tão alta quanto eu, cabelos negros ondulados caíam-lhe nos ombros, o rosto era o mais belo que me lembrava ter visto, mas o destaque estava em seus olhos, eu via em seus olhos mais do que simplesmente a cor negra, não era o negro de tudo que nos rodeava, era um negro diferente, embora eu não soubesse explicar o que o fazia diferente, talvez fosse o contraste com sua pele branca. - O que esse desenho significa?

O desenho que eu fizera na guitarra era uma espécie de planta espinhenta e não tinha nenhum significado. Se eu dissesse que não tinha significado ela me acharia nada criativo, o que queria era impressionar ela. - Significa que mesmo quando tudo esteja em ruínas, se estivermos de bem com nossa própria palavra, tudo estará bem.

Kennie me observou com uma expressão de quem já sabia que eu tinha acabado de inventar o significado, o tom da minha voz transpareceu isso. No entanto, fazia todo sentido dar esse significado ao desenho, eu vivia com honra e pretendia morrer com ou pela honra.

- Bem, tentarei encontrar seu irmão agora. - ela extinguiu o silêncio que se formara, minha mente congelava ao pensar no que Kennie poderia querer com Eldrick. Desagradava-me um bocado saber que ela supostamente gostasse de estar com ele. Ela era minha amiga.

Mas quando ela já entrava na floresta novamente, pelo caminho que viera, um grave som encheu minha audição de desespero, o som fez com que eu me lembrasse das histórias dos tempos das guerras sonoras, do tempo que havia perdido meu avô.

- Você escutou isso, And? Escutou isso? - sussurrou Kennie ao aproximar-se novamente de mim, só entendi quando disse pela segunda vez, contrabaixos eram armas perigosas e isso me terrificava. - É o som de um contrabaixo, Androrty!

- Eu sei, Ken, vamos voltar à cidade e chamar os guitanos rapidamente, é perigoso aqui, vamos logo! - fiquei de pé, caminhei, posicionei a guitarra e corri até o caminho de volta, mas Kennie não se movia, terá sido paralisada? - Meu Deus, Kennie, vamos!

Mal pude terminar de chamá-la, surgiram dois grandes homens saindo desasseados das árvores negras do Sul, eles empunhavam grandes contrabaixos feitos em ferro, com cordas tão grossas que facilmente serviriam para açoitar um pianista com tranquilidade. Vestiam capas cinza com capuzes cobrindo seus rostos.

- Quanto tempo não vejo um guitano. - disse um dos homens posicionando seu indicador da mão esquerda em uma nota, ele parecia mais tranquilo que seu companheiro. - Mikor, tu sabes o que fazer.

O ouvidor estremeceu.

- Vamos, garota, corra até aqui! - gritei alto na esperança de alguém da cidade me ouvir, eu desejava lutar contra eles e impressionar ela, mas o mais sensato a se fazer, naquele momento, era fugir. - Eles querem nos levar, fuja!

- Nós podemos nos proteger. - disse ela correndo em direção ao baixino que parecia se chamar Mikor, ele parecia mais assustado que ela.

Mal ela saíra do lugar quando Mikor tocou inquietamente duas cordas soltas de seu baixo, provocando uma onda que a fez cair perto de mim. Meus ouvidos estavam com um grave som que não cessava, percebi que o outro baixino estava tocando uma sequência na minha direção, fechei os olhos, meu mundo pareceu mais lento, como se estivesse com vontade de dormir. Voltei a realidade ao examinar o local, agora de olhos abertos, percebi que os baixinos se posicionavam para atacar novamente, mas eu não conseguia escutar nada, só a onda grave que parecia vir da minha mente.

Comecei a tocar em Noite o solo que passara a manhã treinando, mas minhas mãos estavam queimadas de erros e cada nota doía como quando estamos com o pé machucado e ainda assim insistimos em andar. Quando estava finalizando a escala, a última nota saiu meio tom acima e mais queimaduras aconteceram.

Não éramos páreo para eles, fitei minha companheira, ela estava de pé com o ânimo renovado falando coisas que eu não era capaz de ouvir. Então fiz o que pareceu certo, joguei minha guitarra em sua direção para que se protegesse enquanto fugia, e corri à cidade, com o som de um rio raivoso na cabeça. Após avançar pelo que pareceu-me minutos, minha audição começou a tornar e ouvia o som grave com menos intensidade, ainda estava muito ofegante. Quando olhei para trás o que eu temia aconteceu. Kennie havia ficado lutando com os baixinos, e eu ouvia os agudos sons da minha Noite ao longe. Uma parte de mim não pensou em Kennie, só queria se proteger e fazer o som parar, essa parte era a maior.

Antes que pudesse pensar em algo para fazer, uma voz familiar vinda do Norte começou a falar rapidamente atrás de mim, era Eldrick com mais três guitanos; Konnor, o irmão de Kennie estava entre eles. - O que aconteceu com você, irmão?

- Há dois baixinos atacando Kennie no Sul... - Após hesitar alguns segundos admiti. Mal tinha acabado de proferir a má notícia quando Konnor me lançou muitas palavras, das quais só consegui distinguir “E você a deixou sozinha para a morte, covarde!?”, logo desapareceram, como cachorros do moinho, ao auxílio de Kennie. - Ajudem-na.

Disse por fim.

Allan Marques
Enviado por Allan Marques em 27/09/2014
Reeditado em 19/11/2014
Código do texto: T4978040
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