Zaranza e o Xadrez
Hesito entre produzir um texto filosófico, meu "ponto fraco", ou falar do meu amigo José Milton Zaranza, mais conhecido por Zaranza. As especulações abstrusas, afinal, podem esperar, penso.
Decido, então, zaranzar, não no sentido do verbo , mas tão somente recordar um episódio do velho Zaranza com o meu amigo de sempre, o Toldo. O ano era 1970, com certeza, pois enfrentava um início de depressão, causada,ao que parece, pelo surgimento dos primeiros problemas do meu primeiro casamento e, principalmente, por não estar conseguindo me firmar na profissão de advogado.
Tinha um escritório na rua Senador Dantas, Edifício Santos Wallis, no nono andar, Rio de Janeiro. E já com dois problemas: clientes muito pobres e nenhum jeito para cobrar meus honorários Estava atuando mais como um defensor público do que como um advogado particular. Cobrar de um cliente era pior do que enfrentar uma audiência “cabeluda”, o que acabou determinando minha decisão de fazer concurso público e me tornar funcionário .
Para enfrentar minha crise depressiva comecei a aprender a jogar xadrez com o amigo Zaranza. Ele era um jogador intuitivo e não gostava de estudar a teoria do xadrez: abertura, meio-jogo e finais. Desta forma, aprendi o jogo com muitos defeitos, por ignorar a teoria, o que é básico nesta difícil arte, como pude constatar mais tarde. No início da aprendizagem, o meu amigo jogava sem a Dama e sem um bispo, mas não deixava de jogar com os dois cavalos. Ele tinha uma perícia incrível no manejo dos cavalos, que ele chamava carinhosamente de bucéfalos.
Era incrível, os bucéfalos faziam um tal carnaval no tabuleiro, que ele ganhava rapidamente. Levei uns seis meses para melhorar meu jogo, mas inevitavelmente perdia todas as partidas e sempre me apavorando com os bucéfalos do Zaranza.
Nessa brincadeira, a depressão foi se atenuando. Esta terapia foi tão boa que passei também a jogar no meu próprio escritório, após meu expediente. Das dezenove horas em diante, aparecia o Zaranza e os treinos começavam. E meu entusiasmo pelo notável jogo do Zaranza crescia cada vez mais.
Quis então o destino que eu me encontrasse com outro grande amigo, o Gilberto Toldo. Conversa vai, conversa vem, ele me fala que sua paixão era o xadrez. Já havia jogado contra um jogador russo famoso e conseguido empatar. Segredou-me que jogava bem porque tinha base teórica. Exultei com esse encontro e o convidei para ir até o meu escritório, no dia seguinte, depois das sete da noite, onde ele seria apresentado ao Zaranza e os dois poderiam jogar uma partida.
Fui para a casa pensando, maravilhado, como seria formidável esse jogo, dois titãs do xadrez e, claro, eu só tinha a ganhar com essa aula gratuita de xadrez. Como aprenderia, vendo esses dois amigos jogando! Quem ganharia? Não tinha a menor idéia. O jeito era esperar pelo dia seguinte e conferir.
Como de costume, no outro dia, chega o Zaranza, com sua fala de cearense, vestimenta e modos simplórios, sempre calçando uma sandália de couro cru, e muito franco, bem expansivo, ao contrário do Toldo, introvertido, caladão, só se “abrindo” um pouco para os muito íntimos, mesmo assim sempre desconfiado. Falo ao Zaranza, com entusiamo, sobre o Toldo e ele me responde que não tem medo de cara feia, nem de teórico e que o xadrez requer apenas inteligência, não acreditava que decorar os primeiros lances da abertura levasse a algum lugar.
Eu, com uma credulidade de nascença, ia acreditando em tudo que as pessoas me falavam. É, pensava eu, o Zaranza tem razão, a teoria é um mero detalhe. Mas no dia anterior, acreditei, piamente, no Toldo , que me afirmou que sem teoria não se joga bem xadrez. Às 19,15h. chega o Toldo no escritório. Feitas as apresentações de praxe, arrumo o tabuleiro, excitado. Os dois se cumprimentam, seguindo o ritual do jogo e, finalmente, o jogo começa.
O Toldo, pensando muito e o Zaranza jogando rápido, como sempre fazia. Eu, nervoso, atento a tudo. Pra mim, aquilo era o jogo do século, não fazia por menos. Estava certo que tinha ali no escritório a "nata" do xadrez mundial, afinal, um tinha o raciocínio tão rápido quanto o fabuloso americano Fischer, e o outro conseguia empatar com jogador russo.
Só não imaginei com o pífio desenlace que se deu a seguir. Lá pelo décimo quinto lance, partida ainda muito no início, silêncio total, e eu sem entender nada do jogo, vejo o Zaranza pegar uma torre e colocar na primeira linha (retaguarda) da defesa do Toldo e gritar: “xeque-mate”, seguindo-se uma gargalhada estridente que fez tremer o escritório.
Eu, todo arrepiado, atônito, olhar esbugalhado, sem entender direito o que tinha acontecido, vibrei. Mas quando ia dar uns pulos de alegria e pedir explicação para um jogo tão rápido, o nosso Toldo, sem dar uma palavra, subitamente, joga o tabuleiro contra o peito do Zaranza, as peças se esparramando pelo chão.
Nem sei como pude, mesmo com o espírito conciliador que sempre tive, evitar uma reação do Zaranza, surpreso que ficou com o inusitado. Passado o susto, o Toldo, muito sério, explica que no xadrez era proibido manifestações ruidosas, muito menos cafajestadas, concluindo que não houve nenhuma jogada de mestre, apenas um cochilo da parte dele, um acidente. Um xeque-mate “afogado”, que só acontece por distração.
Dito isto, saiu da sala e escafedeu-se. Felizmente, o Zaranza não era de briga, como também não era o Toldo, e a coisa morreu ali. Um ano depois, os dois até participaram de um torneio de xadrez na Faculdade Brasileira de Direito, na Praça da República, bem pertinho da Central do Brasil. Não houve seqüelas, mas a amizade deles não prosseguiu. Prosseguiram as piadinhas malévolas dos dois. Sempre que jogava com o Zaranza, ele me perguntava: “ e o Toldo? Muito teórico? Sabe, Dantas, ele pensa muito no jogo, procurando lembrar os lances que ele decora! É isso aí. Falta-lhe inteligência enxadrística!” Por outro lado, quando jogava com o Toldo, vinha a pergunta inevitável: “ e o mestre Záranza? (com uma inflexão estrangeirada, na antepenúltima sílaba) Continua com aquele jogo chinfrim? Um parentêse (amo esses desvios na conversa): em geral, as línguas colocam o acento na penúltima sílaba, tornando a palavra mais doce, mais suave. Ao contrário do francês com seus acentos na última sílaba, o que faz a fala ficar soluçante, já dizia Shopenhauer.
Quarenta anos passados e tenho notícias dos meus velhos amigos. É a vida nos reservando surpresas ! Toldo, morando nas Alagoas, cuida de um coqueiral da família da mãe, uma ilha paradisíaca em Maceió. Separado, vive um romance com uma moça de 40 anos, jogando “frescobol” na praia e dançando forró arretado, com quase setentinha. Apaixonou-se por jogo de futebol de botão profissional e no mês de abril estará jogando em Salvador, na Bahia. Já jogou até em Porto Alegre.
Telefono para o Zaranza, que ficou viúvo, continua morando no Grajaú, no Rio, e ainda fiel àquele seu xadrez romântico, sempre elogiando seus bucéfalos. Pergunto como vão as coisas e ele me diz, com aquele sotaque aberto nordestino, que está namorando uma menina. Assusto-me e pergunto, uma menina? – É isso mesmo, uma menina de 60 anos, vamos ver no que vai dar. Ela é de São Paulo. Ele, com 75 anos.
Conversamos mais um pouco, demos boas risadas, dei notícias do Toldo e nos despedimos. Desligo o telefone e fico parado, continuando a não entender as jogadas dos meus amigos, muito mais velhos que eu, com esse vigor todo. É, não jogam aquele xadrez que eu imaginava, mas na vida, acertei, são mesmo uns titãs .
Volto a mim e decido convicto: “vou escrever algo filosófico. O abstrato está mais fácil de entender do que esta vida concreta dos dias de hoje”.
Nota: Esta crônica só foi lida por três amigos: Roberto Rego, Maria Iaci (que não está mais no Recanto) e Geraldo do Engenho.
Em razão de minha forçada ausência neste fim de ano, pensei em republicar essa crônica, em homenagem ao Zaranza. Ontem, depois de 08 anos, ele conseguiu me encontrar pela internet. E confirmou que acabou ficando com a paulista referida nesta crônica. Deixou a residência em grajaú, no Rio, e agora reside em Serra Negra, uma estação de águas em São Paulo. Até breve, amigos e amigas.
Decido, então, zaranzar, não no sentido do verbo , mas tão somente recordar um episódio do velho Zaranza com o meu amigo de sempre, o Toldo. O ano era 1970, com certeza, pois enfrentava um início de depressão, causada,ao que parece, pelo surgimento dos primeiros problemas do meu primeiro casamento e, principalmente, por não estar conseguindo me firmar na profissão de advogado.
Tinha um escritório na rua Senador Dantas, Edifício Santos Wallis, no nono andar, Rio de Janeiro. E já com dois problemas: clientes muito pobres e nenhum jeito para cobrar meus honorários Estava atuando mais como um defensor público do que como um advogado particular. Cobrar de um cliente era pior do que enfrentar uma audiência “cabeluda”, o que acabou determinando minha decisão de fazer concurso público e me tornar funcionário .
Para enfrentar minha crise depressiva comecei a aprender a jogar xadrez com o amigo Zaranza. Ele era um jogador intuitivo e não gostava de estudar a teoria do xadrez: abertura, meio-jogo e finais. Desta forma, aprendi o jogo com muitos defeitos, por ignorar a teoria, o que é básico nesta difícil arte, como pude constatar mais tarde. No início da aprendizagem, o meu amigo jogava sem a Dama e sem um bispo, mas não deixava de jogar com os dois cavalos. Ele tinha uma perícia incrível no manejo dos cavalos, que ele chamava carinhosamente de bucéfalos.
Era incrível, os bucéfalos faziam um tal carnaval no tabuleiro, que ele ganhava rapidamente. Levei uns seis meses para melhorar meu jogo, mas inevitavelmente perdia todas as partidas e sempre me apavorando com os bucéfalos do Zaranza.
Nessa brincadeira, a depressão foi se atenuando. Esta terapia foi tão boa que passei também a jogar no meu próprio escritório, após meu expediente. Das dezenove horas em diante, aparecia o Zaranza e os treinos começavam. E meu entusiasmo pelo notável jogo do Zaranza crescia cada vez mais.
Quis então o destino que eu me encontrasse com outro grande amigo, o Gilberto Toldo. Conversa vai, conversa vem, ele me fala que sua paixão era o xadrez. Já havia jogado contra um jogador russo famoso e conseguido empatar. Segredou-me que jogava bem porque tinha base teórica. Exultei com esse encontro e o convidei para ir até o meu escritório, no dia seguinte, depois das sete da noite, onde ele seria apresentado ao Zaranza e os dois poderiam jogar uma partida.
Fui para a casa pensando, maravilhado, como seria formidável esse jogo, dois titãs do xadrez e, claro, eu só tinha a ganhar com essa aula gratuita de xadrez. Como aprenderia, vendo esses dois amigos jogando! Quem ganharia? Não tinha a menor idéia. O jeito era esperar pelo dia seguinte e conferir.
Como de costume, no outro dia, chega o Zaranza, com sua fala de cearense, vestimenta e modos simplórios, sempre calçando uma sandália de couro cru, e muito franco, bem expansivo, ao contrário do Toldo, introvertido, caladão, só se “abrindo” um pouco para os muito íntimos, mesmo assim sempre desconfiado. Falo ao Zaranza, com entusiamo, sobre o Toldo e ele me responde que não tem medo de cara feia, nem de teórico e que o xadrez requer apenas inteligência, não acreditava que decorar os primeiros lances da abertura levasse a algum lugar.
Eu, com uma credulidade de nascença, ia acreditando em tudo que as pessoas me falavam. É, pensava eu, o Zaranza tem razão, a teoria é um mero detalhe. Mas no dia anterior, acreditei, piamente, no Toldo , que me afirmou que sem teoria não se joga bem xadrez. Às 19,15h. chega o Toldo no escritório. Feitas as apresentações de praxe, arrumo o tabuleiro, excitado. Os dois se cumprimentam, seguindo o ritual do jogo e, finalmente, o jogo começa.
O Toldo, pensando muito e o Zaranza jogando rápido, como sempre fazia. Eu, nervoso, atento a tudo. Pra mim, aquilo era o jogo do século, não fazia por menos. Estava certo que tinha ali no escritório a "nata" do xadrez mundial, afinal, um tinha o raciocínio tão rápido quanto o fabuloso americano Fischer, e o outro conseguia empatar com jogador russo.
Só não imaginei com o pífio desenlace que se deu a seguir. Lá pelo décimo quinto lance, partida ainda muito no início, silêncio total, e eu sem entender nada do jogo, vejo o Zaranza pegar uma torre e colocar na primeira linha (retaguarda) da defesa do Toldo e gritar: “xeque-mate”, seguindo-se uma gargalhada estridente que fez tremer o escritório.
Eu, todo arrepiado, atônito, olhar esbugalhado, sem entender direito o que tinha acontecido, vibrei. Mas quando ia dar uns pulos de alegria e pedir explicação para um jogo tão rápido, o nosso Toldo, sem dar uma palavra, subitamente, joga o tabuleiro contra o peito do Zaranza, as peças se esparramando pelo chão.
Nem sei como pude, mesmo com o espírito conciliador que sempre tive, evitar uma reação do Zaranza, surpreso que ficou com o inusitado. Passado o susto, o Toldo, muito sério, explica que no xadrez era proibido manifestações ruidosas, muito menos cafajestadas, concluindo que não houve nenhuma jogada de mestre, apenas um cochilo da parte dele, um acidente. Um xeque-mate “afogado”, que só acontece por distração.
Dito isto, saiu da sala e escafedeu-se. Felizmente, o Zaranza não era de briga, como também não era o Toldo, e a coisa morreu ali. Um ano depois, os dois até participaram de um torneio de xadrez na Faculdade Brasileira de Direito, na Praça da República, bem pertinho da Central do Brasil. Não houve seqüelas, mas a amizade deles não prosseguiu. Prosseguiram as piadinhas malévolas dos dois. Sempre que jogava com o Zaranza, ele me perguntava: “ e o Toldo? Muito teórico? Sabe, Dantas, ele pensa muito no jogo, procurando lembrar os lances que ele decora! É isso aí. Falta-lhe inteligência enxadrística!” Por outro lado, quando jogava com o Toldo, vinha a pergunta inevitável: “ e o mestre Záranza? (com uma inflexão estrangeirada, na antepenúltima sílaba) Continua com aquele jogo chinfrim? Um parentêse (amo esses desvios na conversa): em geral, as línguas colocam o acento na penúltima sílaba, tornando a palavra mais doce, mais suave. Ao contrário do francês com seus acentos na última sílaba, o que faz a fala ficar soluçante, já dizia Shopenhauer.
Quarenta anos passados e tenho notícias dos meus velhos amigos. É a vida nos reservando surpresas ! Toldo, morando nas Alagoas, cuida de um coqueiral da família da mãe, uma ilha paradisíaca em Maceió. Separado, vive um romance com uma moça de 40 anos, jogando “frescobol” na praia e dançando forró arretado, com quase setentinha. Apaixonou-se por jogo de futebol de botão profissional e no mês de abril estará jogando em Salvador, na Bahia. Já jogou até em Porto Alegre.
Telefono para o Zaranza, que ficou viúvo, continua morando no Grajaú, no Rio, e ainda fiel àquele seu xadrez romântico, sempre elogiando seus bucéfalos. Pergunto como vão as coisas e ele me diz, com aquele sotaque aberto nordestino, que está namorando uma menina. Assusto-me e pergunto, uma menina? – É isso mesmo, uma menina de 60 anos, vamos ver no que vai dar. Ela é de São Paulo. Ele, com 75 anos.
Conversamos mais um pouco, demos boas risadas, dei notícias do Toldo e nos despedimos. Desligo o telefone e fico parado, continuando a não entender as jogadas dos meus amigos, muito mais velhos que eu, com esse vigor todo. É, não jogam aquele xadrez que eu imaginava, mas na vida, acertei, são mesmo uns titãs .
Volto a mim e decido convicto: “vou escrever algo filosófico. O abstrato está mais fácil de entender do que esta vida concreta dos dias de hoje”.
Nota: Esta crônica só foi lida por três amigos: Roberto Rego, Maria Iaci (que não está mais no Recanto) e Geraldo do Engenho.
Em razão de minha forçada ausência neste fim de ano, pensei em republicar essa crônica, em homenagem ao Zaranza. Ontem, depois de 08 anos, ele conseguiu me encontrar pela internet. E confirmou que acabou ficando com a paulista referida nesta crônica. Deixou a residência em grajaú, no Rio, e agora reside em Serra Negra, uma estação de águas em São Paulo. Até breve, amigos e amigas.