Lapso de Consciência

Madrugada, escorado num canto da boate, calado, escutando os colegas falando. Jogos de video-game. Mulheres. Nada que o valha. Falta de paciência me macerava a boa vontade de continuar ali escutando baboseiras. Pessoas tendem a ser extremamente entediantes e, particularmente, eu tinha um pendor sem igual para o tédio. Decepcionante. Tudo isso me amargava. E eu detesto papo furado, o que me satura ainda mais.

Ainda tentando disfarçar o desapego e a hipnose que a batida da música causava, vi entrar na pista uma garota baixinha com um vestido amarelo. Cabelos cacheados compridos e muito armados – fácil reconhecer. Eu a avistei na bilheteria algumas horas antes. Ninguém destoava tanto daquele ambiente quanto ela. Aquele vestido amarelo e rodado, o cabelo encaracolado e bagunçado. Até sua fisionomia me parecia um muro de concreto, a pele macilenta. Se ela tivesse passado por mim na rua eu nem notaria, mas naquele lugar era impossível não vê-la. À primeira vista, era displicente até, ainda que patética (perdoe o amargor). Tanto que na hora nem dei atenção. É que, convenhamos, suas amigas e todas as outras moças estavam vestidas de maneira provocante, com brilhos, maquiagem e ela... Bem, ela nada.

Suponho que, entre os milhares de moças que se vestem de modo parecido, para elas eu também devo passar despercebido. Estou á margem de tudo o que suponho que elas achem atraente. Visto-me igual aos meus amigos e não tenho muito papo. Por preguiça mesmo. Pouco me importa, e até me enojam às vezes, essas pessoas expansivas e simpáticas, boa praça. Gosto de dizer que tenho o meu próprio “espaço-tempo”, uma dimensão cujo lugar para esse tipo de gente não existe. Por todo esse meu comodismo e descaso em não me importar de ser mais um vagando por aí, ver aquela garota incomum se intrometer no meio de tantos - um coringa em meio às cartas de um baralho - chamou minha atenção. Era um modo pretencioso, aquele dela. Por um momento, este pensamento me excitou – talvez ela sequer notasse o que significava aquele ato, beirava a uma discreta rebeldia! O que tornava tudo mais interessante.

Sem pensar, toda ela, naquele momento, me tentou. Displicente e sem notar, inclinei meu corpo para frente, deixando de me escorar na parede para me apoiar em uma barra de ferro mais a frente, que separava a pista de dança do bar. Ela fechou os olhos, ergueu os braços, e começou a dançar, lentamente. Bem, se queria chamar atenção, ao menos de uma pessoa, ela conseguiu: Meus olhos a seguiram com vontade, umedeci meus lábios. Era dolorosamente invasiva, a visão.

Acho que isso merece um novo parágrafo, sabe? Pois o jeito que ela dançava... Como posso explicar? Antes eu ria dela, da sua singularidade. Agora, o que me prendia os olhos não era nada disso. Sim, ela estava dançando, mas não era exatamente com a intenção de seduzir. Era diferente o modo como seu corpo balançava com a música, como a saia do vestido deixava ver as pernas, como os cabelos se enroscavam nos braços. Enquanto isso eu pensava em como seria escorregar os lábios pela sua cintura, ver um pouco mais acima dos joelhos. Juro por Deus! Será que ninguém mais notou que havia algo de sobrenatural naquela menina?

Os lábios sussurravam a letra da música, dane-se qual, eu não me lembro e nem faço questão. Eram opacos, secos e, se moviam cantando. Imaginei minha língua se movendo no mesmo ritmo de seus lábios. Toda ela seguia o ritmo da melodia. Porém, com o passar da batida, a música que a seguia (E meus quadris queriam fazer o mesmo.). Ou era apenas minha impressão? Mas o fato é que, naquele momento, a pista pertencia a ela, a boate era dela e toda a minha pouca atenção - quem eu não dedico a nada nem a ninguém – lhe pertenciam. A visão me consumia de um modo agressivo.

A música terminou e eu a observei se retirar a passos miúdos em direção à saída da boate. E isto foi o suficiente para desencadear em meus pensamentos cenas para alimentar meus pensamentos por meses. Eram as suas pernas, suas ancas nas minhas. Os lábios em qualquer parte do meu corpo em movimento ritmado.

E se ela não quisesse, eu sempre poderia forçar a barra - que importa?

Quis segui-la e posso jurar que a vi olhar para mim de soslaio. Quando meu olhar esbarrou no dela, senti um impulso de correr em sua direção. Jogá-la na parede, prender seus pulsos, levantar a saia para revelar o que mais havia mais além. Escorregaria com ela pela parede da boate, não importa quem estivesse ali para assistir. Porém, ela pareceu ignorar-me.

Antes que eu pudesse satisfazer o meu impulso, um amigo segurou meu braço: “Cara, ‘cê tá legal?”. Eu não respondi, só disse que ia ao banheiro. Menti - fui com passos frenéticos em direção à rua, contendo meus pensamentos perturbadores. Encobria-os bem, sob uma máscara fingida de garoto banal. Sempre fui bom nesse jogo de esconder, e eu queria muito camuflar meus pensamentos naquela madrugada, naquele momento específico.

Chegando lá, obviamente, nem sinal dela. Perguntei na bilheteria e o sujeito disse que só a viu entrar, não a viu sair. Procurei pela boate inteira, achando que tinha me enganado na direção que ela seguiu, mas nem sombra de vestido amarelo. Nem as amigas eu consegui achar – queria saber o nome da garota. Nas semanas seguintes, continuei retornando à mesma boate para ver se a encontrava. Não por ter sentimentos em relação a ela, pois acho que sou um cara que não tem muito disso, mas por, digamos, “curiosidade”. Teimosia, talvez? Ou só vontade de ter o que não conhece? Não, era tudo para ver se ela conseguia prender minha atenção como da outra vez, feito um passarinho na gaiola. Tal ideia até hoje me parece pura e simplesmente excitante, mesmo depois de tanto tempo.

Até que, depois de uns dois meses, eu deixei estar. Ainda assim, quando ando na rua, procuro por ela, com mais atenção do que pensei que dedicaria a alguém. Especialmente a uma estranha cujo “não sei o quê” ainda me faz virar a cabeça e curvar um sorrisinho anguloso para qualquer vulto familiar e envolvente.