Ariramba

Foi no tempo do almanaque Tico-Tico. Éramos crianças e as nossas férias, à beira da praia – praia de rios, afluentes do Amazonas – foram os acontecimentos mais importantes daqueles anos em nossas vidas. Era um mundo de felicidades, quando o deslumbramento vinha nos possuir a toda hora. Nada nos abatia. Tudo se passava na Ilha do Mosqueiro, na Praia do Ariramba, onde os barcos, com suas velas coloridas, bem cedo chegavam até nossos pés.

Só havia um ônibus no lugar. Era o único veículo que, pela manhã, ainda de madrugada, levava-nos até o mercado. Quadro surrealista, ou pequena amostra daquele que era, com toda certeza, o mais excêntrico de todos: o Ver-o-Peso, situado na capital. Peixes enormes e vivos, frutas as mais diversas, barquinhos de miriti confeccionados com espinhos de laranjeira... costumes indígenas. A cultura indígena que era incorporada a uma parte do Brasil – quase a um terço de seu território – e, não obstante, tão pouco conhecida pelos brasileiros. À noite, tal ônibus recolhia os passageiros do Navio Gaiola, que atracava no lugarejo, ao entardecer, num trapiche frágil e sacudido, deixando em cada casa o convidado ansiosamente esperado.

Houve um dia em que contamos catorze redes espalhadas pela varanda da casa, que era enorme. A parte da frente ficava voltada para a rua principal por onde circulava o ônibus e, pelos fundos, via-se o mar, que, na realidade, era o rio, mas assim chamado porque não permitia-se enxergar a outra margem, tamanha a largura que tinha. A casa era construída em dois pavimentos, sendo o primeiro ocupado por escuro porão e por um pequeno quarto, habitado por uma velha senhora, solitária, com quem pouco mantínhamos relação. Dona Cecília – assim se chamava – era pessoa de hábitos estranhos e algo místico. O rosto macilento, emoldurado por cabelo de um tom branco-amarelado e arrumado em grossas tranças, lembrava o de uma velha tapuia.

Morávamos em cima deste pequeno mundo, que julgávamos a nossos pés...

Certa noite, em que éramos só nós na casa, a senhora, acometida de súbita loucura, pôs-se a caminhar, desgrenhada, de um lado para o outro, em seu minúsculo quarto. Com os punhos cerrados, arremessava-se violentamente contra a porta, que ela mesma havia trancado. Gritava. Eram frases desconexas. A noite era escura e o temor logo se apossou de todos nós. O assoalho divisor da casa permitia, através de suas largas frestas, observar os acontecimentos no andar de baixo. Entretanto, para isso, era necessário que assumíssemos grotesca posição, com os olhos fixos no chão, hirtos, por horas à fio. Assim permanecemos até a amanhecer, quando Dona Cecília, vencida (e vencidos) pelo cansaço, prostrou-se, desfalecida na rede ( e nós no assoalho).

Ao amanhecer, o ambiente ainda era de tensão, a ponto da casa, inexpugnável fortaleza de felicidade e depositária das nossas maiores alegrias, ser abalada por tal pequeno descuido dos mais velhos. Estes, que deitados sobre o chão, no assoalho, revelaram, sem escrúpulos e desavisados, o maior medo do mundo, que a todos contagiou por muito tempo.

“Dorme menino-grande, senão a Dona Cecília te pega.

Ela mora num castelo mal-assombrado.”.

José Augusto Ferro Costa
Enviado por José Augusto Ferro Costa em 20/09/2014
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