O desaparecimento de Ramon

Depois de passar um final de semana inteiro com a família no sítio de uns parentes, onde conversou bastante, tomou cerveja, comeu churrasco, ouviu Ivete Sangalo e assistiu a duas partidas de futebol, Ramon recebeu de sua esposa um passe livre para não ir ao casamento do primo dela na última sexta-feira e ainda ficar em casa sozinho os três dias seguintes, enquanto ela curtia com os filhos a roça do sogro, emendando o final de semana com o feriado na segunda-feira.

Maridos normais, que têm esposas boazinhas, ganham delas de vez em quando um “vale noite”, para irem sozinhos a barzinhos com amigos. Já Ramon, que foge um pouco do padrão normal de marido, ganha às vezes um “vale ficar sozinho em casa”, que ele adora. Foi o que aconteceu no último final de semana. Só que na segunda-feira à noite, ao voltar para casa, a família de Ramon não o encontrou na frente do computador, como de costume, nem na cama ou no banheiro lendo, nem assistindo a filmes cult na sala.

Onde estaria Ramon? O computador estava desligado, mas ao seu redor havia vários vestígios da presença de seu dono: uma garrafa de vinho tinto vazia, uma taça suja, um prato com restos de lasanha, uma lata de azeite, um pratinho de sobremesa com restos de torta de limão, caroços de azeitona preta, pedaços de pele de calcanhar trincado, fragmentos de unha, caspa, fio dental usado e um par de chinelos.

No chão da sala encontraram um vestígio perturbador: sangue. Havia uma grande poça seca em frente à televisão e uma trilha de gotas indo em direção à cozinha, mas desaparecendo de repente, antes de chegar ao armário da pia. Na sala, próximo à trilha de sangue, havia um pedaço de casca de laranja; na mesa da cozinha, uma caixa de fósforos com um palito usado; e na bancada da pia, um rolo de papel toalha jogado de qualquer jeito. Da escada viram que o porão estava completamente escuro. Chamaram duas vezes. Nada. Procuraram por todos os cômodos, sem sucesso. Então ligaram para mim. Fui imediatamente. Reviramos de novo a casa, olhamos nos guarda-roupas, embaixo das camas, mas nem sinal de Ramon. “Sozinho em casa com seus livros e filmes ele não sairia para a rua de jeito nenhum”, disse a mulher, preocupada.

Os livros que ele andava lendo estavam nos dois banheiros. No social, 'Os demônios', de Dostoievski. No da suíte, uma biografia de Dostoievski, ao lado de uma programação recente da TV a cabo. Abri a programação e descobri algo que me pareceu uma pista importante: o título de um documentário sobre Dostoievski, que tinha passado naquele dia, das 16 às 17 horas, estava marcado de vermelho. Li o resumo. Era sobre o livro 'Notas do subsolo'. Eu sabia que Ramon tinha esse livro e que estava reunindo coragem para lê-lo. Fui à estante procurá-lo, mas não o encontrei.

Analisei as pistas e rapidamente cheguei à solução do mistério. Minha explicação foi a seguinte:

“Hoje à tarde Ramon foi ao banheiro, onde leu um pouco da biografia de Dostoievski e folheou a programação da TV a cabo, para ver se encontrava algo interessante. Levou a caneta vermelha para marcar palavras desconhecidas no livro, que era em francês. Ao ver que às 16 horas começaria um documentário sobre um livro de Dostoievski que ele tinha muita vontade de ler, marcou-o na programação e continuou lendo a biografia. Em seguida caminhou pela casa, pensativo, desligou o computador, folheou um ou outro livro, e às 16 horas ligou a televisão. Pegou uma laranja, uma faca e se pôs diante do aparelho. De pé, descascava a fruta enquanto assistia ao documentário. Deve ter visto ou ouvido alguma coisa no filme que o perturbou; talvez tenha levado um choque, não sei. O fato é que cortou a mão. O assunto devia ser tão intrigante que ele não se importou com o corte e continuou assistindo, o que explica a poça de sangue no chão, em frente à televisão. Ao acordar do transe, foi à cozinha, deixando cair um pedaço de casca de laranja no caminho, jogou a fruta e a casca na lixeira (sem mudar a rota), pegou duas ou três folhas de papel toalha na bancada da pia, enrolou-as na mão e começou a limpar o chão, próximo ao armário, mas logo desistiu, porque estava com 'Notas do subsolo' na cabeça, obcecado por alguma coisa vista ou ouvida no documentário. Foi à estante, pegou o livro, acendeu uma vela utilizando o fósforo que agora se encontra na mesa da cozinha e foi para o ‘subsolo’, ou seja: o porão, onde se sentiu o próprio narrador do livro, cercado de escuridão. Como o livro é pequeno, deve tê-lo terminado em menos de quatro horas, e agora está lá, com a vela apagada, deitado no chão, paralisado, talvez ainda com a mão esquerda enrolada em papel toalha, pensando no livro, no seu autor, na Rússia Czarista, completamente fora da realidade”.

Dito e feito. Fomos ao porão e o encontramos lá, deitado, saindo do transe, com 'Notas do subsolo' aberto na última página sobre o peito nu e a vela apagada no chão, quase no final. Sua família correu para abraçá-lo, aliviada. Ele se mostrou feliz em vê-los, acolheu-os carinhosamente e propôs: “Vamos sair para tomar um sorvete?”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 19/09/2014
Reeditado em 20/09/2014
Código do texto: T4967701
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