A tagarela

- Papai, vai doer? (chorava sem parar a menininha aflita)

- Não, minha filha. Logo, logo isso passa. Mantenha a calma.

-Pai, eu não quero ir ao dentista hoje, paizinho... por favor.

- Filha, temos de resolver isso agora mesmo. De imediato. Já disse que não irá doer. Fique calma.

Estavam no supermercado. Pai e filha. E a menininha fora de encontro aos sucos e procurou o seu predileto - o suco de goiaba - Assim que pegou no casco, desequilibrou-se e caiu por cima da garrafa que espatifara-se no chão. No tombo, feriu uma das mãozinhas num corte pequeno e quebrou os dois dentinhos da frente. As pessoas acotovelaram-se para ver a cena. O sangue nauseabundo inundara aquele círculo e agora além da dor, a menininha também fazia ânsia de vômito.

O pai foi até o carro e trouxe em seguida uma toalhinha molhada para limpar aquele sangue todo. As pessoas também estavam aflitas vendo a menininha chorar de soluçar. Buscaram uma cadeira e a danadinha sentou-se.

O pai cuidadosamente limpara todo o rostinho da menina e a mãozinha com o corte raso. Ao mesmo tempo que a limpava conversava para acalmá-la.

- Agora nós vamos no Dr. David, tá?

- Não paizinho, por favor. Eu não quero ir lá hoje.

- Mas, filha, você quebrou os dois dentinhos da frente e pelo que vi, tem um mole. Vamos resolver logo isso, "M"

- Não, pai, não... não pai... nãããão... por favor.

O pai a levantou no colo e a levou em direção ao estacionamento. Entraram no veículo e...

- Pai, ô paiê, olha, nem tá doendo mais. Olha só. Já tô bem. Vamos pra casa, né?

- Negativo, vamos ao dentista.

- Paizinho... vamos fazer o seguinte? Porque a gente não vai na metade da sexta-feira?

- Como assim? Na metade da sexta-feira? Hoje é sábado, "M". Vamos agora e pronto.

- Mas pai, na metade da sexta é melhor.

- Que porcaria é essa de metade da sexta? Explique-se.

- É pra gente ir na terça-feira, paizinho. Metade de seis é três. Então vamos na terça...

- Meu Deus, como você inventa essas coisas hein!?

- É porque já melhorei, paiê.

- Mas você está com o dentinho mole. E talvez seja preciso extraí-lo.

- Paizinho, pára. Pára paizinho pelo amor de Deus, por tudo quando for sagrado, tenha piedade...

- "M", onde você aprendeu a falar desse jeito? "tenha piedade"...

- Aprendi com o padre José. Ele é que fala assim. Ele sempre diz que devemos ter piedade para com os nossos semelhantes que sofrem. E eu estou sofrendo muito pai.

- Que sofrendo "M"! Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk!

- Você acabou dizendo que não sentia mais nada.

- Mas agora sinto uma dor profunda...!

- Dor profunda? E essa frase você aprendeu com quem?

- Ah, essa foi com a Bianca. Ela disse que sentia uma dor profunda porque terminou com o seu namorado e...

- Chega! Chega desse assuntinho besta! Onde já se viu nessa idade falar desse jeito! Chega! E me deixe dirigir em paz senão posso cometer um acidente.

- Ué, pai... você não tem senso de direção e nem reflexo? Como você tirou a carteira de mot...

- Cala a boca agora! Fique quieta ou vai levar umas palmadas, menina! Você não parou de falar um só minuto até agora e nem estamos na metade do caminho. Fique calada por um momento apenas.

(Passaram-se 5 minutos e a tagarela começava o seu repertório)

- Ô paiê, ô paaiiêê, agora já posso falar novamente? Olha, vamos na metade da sexta-feira. Eu juro que vou sem fazer muxoxo.

(Não houve resposta, mas um leve murmúrio do seu genitor - caramba, eu fiz essa pecinha - E a mãe nunca está nessas horas pra me ajudar...)

- Pai, agora deu pra falar sozinho é? Tá passando mal, tá sentindo alguma coisa pai?

- Não, minha filha, não estou sentindo nada. Fique caladinha, sim? Ai que alívio chegamos, Marcela.

- Mas já? Você não disse que a gente nem tava na metade? Hoje não pai, por favor... eu te imploro, tenha misericórdia!...

- Marcela! Entre logo! Vamos!...

(a danadinha desandou a chorar num choro mais sentido desse mundo, soluçava e se sufocava com o seu próprio soluço)

- Boa tarde Dr, David, como vai?

- Tudo bem, Alencar? Como está essa força? Bem... estamos bem, a Marcelinha é que sofreu um pequeno acidente e blá, blá, blá....

- Ah, pobrezinha... tá doendo querida?

- Não, Dr, Daaa vii ddd... hic, hic... não quero ir ao dentista hoje. Eu disse pro meu pai que...

- Querida, olha, vamos ter de restaurar esse dentinho aqui e o outro vamos extraí-lo está certo. Eu prometo a você que não irá doer em nenhum momento. Você apenas sentirá a picada da agulha, tá bem?

- Não, Dr, David, por favor, por misericórdia...

- Marcela! Sente-se agora ou eu vou perder a pouca paciência que ainda me resta com você, minha filha!

Marcelinha sentou-se. E num choro convulsivo pediu ao seu pai que segurasse em sua mãozinha...

- Segura a minha mão, papai? Segura?

- Seguro sim, filhinha. Fique calma, viu? Logo, logo isso passa.

Dr. David começou a contar estorinhas engraçadas para que a paciente impaciente se acalmasse. Mas a menina ainda teve tempo de levantar a mãozinha e emitir um som lá do fundo da garganta: ...

Querida, está doendo muito? A anestesia não pegou? Pode falar - dizia o Dr. David retirando o chumaço de algodão da boquinha da mocinha.

- Não Dr. David. Nada dói. Só quero fazer uma pergunta. Posso?

- Claro que pode, querida.

- Como o senhor consegue trabalhar e contar estórias ao mesmo tempo para mim. O meu pai ao volante não conseguiu ouvir nem a metade do meu assunto.... e olha que só eu falava...

(verídico)

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 18/09/2014
Reeditado em 19/09/2014
Código do texto: T4966938
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