Pintura na parede

Hoje parei para pensar na vida. Mas que vida? Bem, ainda não sei exatamente.

Tenho tentado de todas as formas cuidar da minha aparência. Pensando nessa empreitada, pintei meu rosto na parede do quarto para registrar o momento.

Todo dia percebo que a tal imagem me olha, me vigia, me persegue, pois foi para isso que a pintei. Só não sei se o tal registro é exatamente o que sou. O certo é que às vezes não me reconheço nele.

Não sei porque aquele “sujeito” me olha com tanta severidade, chego a sentir na alma alguns arrepios gelados. Acho que às vezes quero ser o que na realidade não sou. Tudo isso me sufoca, me deprime, me faz pensar duas vezes mais em cada fato do meu cotidiano.

Agora minha vida ficou mais estranha do que já era. Quando olho para o quadro, às vezes sinto que ele é mais importante do que eu, pois vai ficar para a posteridade eu, certamente, vou para debaixo da flor da terra, a exatos sete palmos. Quando isso acontecer vão lembrar de mim através do quadro. Talvez questionem a tinta que foi usada, os trejeitos dos olhos e o que a boca quis dizer e não disse. Sabendo disso, passei a ter mais cuidado com a segurança do referido objeto. Para dizer a verdade passei a ser um sentinela, para vigiar a nós dois: eu e o bendito quadro.

Vez por outra durmo pensando nos detalhes que o cerca. Não enquanto quadro, mas como a pessoa que ele representa, que, neste caso específico sou eu. Isso tem me deixado atordoado, às vezes sinto que sou a própria pintura, o próprio quadro, chego a acreditar que fui delineado dentro de uma moldura de quatro linhas, o que não é verdade, mas é o que estou a sentir agora.

Hoje eu o mostrei para um velho amigo, ele ficou espantado com a beleza dos contrastes entre o branco e o preto dos olhos, disse que eu era um grande pintor, que conhecia todas as técnicas de pintura e que deveria levá-lo para um marchand que conseguiria um bom dinheiro. Confesso que cheguei a pensar no caso, pois não gastei quase nada para pintá-lo e, também, poderia fazer um outro e - quem sabe - até mais bonito e mais barato. Mas por outro lado, como poderia me vender? O que seria de mim? Sem a minha própria imagem. Eu venderia o meu próprio Eu por um punhado de dinheiro sujo e fedorento.

Meu amigo encantado com a pintura, convidou outras pessoas para verem a tal figura. Minha casa virou ponto de referência na rua, todos queriam ver de perto a obra de arte que eu havia feito sem muita preocupação. Até o prefeito da cidade se prontificou em ceder um espaço na sala azul da Prefeitura para uma exposição. Como estamos em ano de eleição não aceitei a oferta, pois poderia ser confundido com um candidato a vereador, ou coisa parecida.

Minha casa virou uma loucura, já não sabia o que fazer para proteger a obra. Fui obrigado, por força das circunstâncias, a contratar um segurança armado durante vinte e quatro horas. O medo de que eu fosse roubado rondava meus pensamentos constantemente. O vizinho da casa do lado direito queria que eu cobrasse ingresso dos visitantes, mas, de cara, não concordei. Não que eu não precisasse de dinheiro, longe disso, o problema era que eu não tinha como fazer a cobrança e no mais, de que serviria o dinheiro fruto de minha própria exposição?

Com o passar dos dias, percebi que minha pintura ganhava vida, ficava mair do que eu. Na verdade ninguém queria saber quem foi que pintou o quadro, ninguém entendeu que aquele era o meu retrato. Foi aí que percebi que a arte sobrepôs à minha própria vida. Olhei para o homem da parede sem me reconhecer nele, aquele devia ser só o registro do homem que um dia fui. Pela primeira vez soube o que era ter ciúmes de mim mesmo - criatura e criador. Aquietei meus pensamentos e meu coração, quando todos foram embora, destruí o quadro sem mais nem porquês. Aquele não era mais eu.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 22/05/2007
Reeditado em 06/10/2017
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