Gérsons

“Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.

A famigerada frase do ex jogador de futebol Gérson, pinçada de um comercial de TV de 1976 dos cigarros Vila Rica, acabou por rotular para todo o sempre um traço nada lisonjeiro até hoje atribuível ao povo brasileiro: o desejo de levar vantagem em tudo, mesmo que às custas da ética, do respeito as leis e do nosso até hoje capenga conceito de cidadania. A famosa “Lei de Gérson”, como ficou desde então conhecida.

E assim estacionar em fila dupla, parar na vaga do idoso, sonegar imposto de renda ou furar a fila quilométrica do show, seriam meras manifestações desse nosso exercício de esperteza tupiniquim.

Esse “levar vantagem” muitas vezes se configura em outro estratagema bastante familiar, o “jeitinho”, que em sua visão mais poética pode ser apenas a flexibilidade do brasileiro para buscar soluções não previstas, usando de criatividade e improviso, mas que quase invariavelmente embute um ardil para driblar alguma regra ou convenção social. Colocar mais água no feijão é um “jeitinho”, a “TV a gato” também.

O jeitinho pode ser um modo engenhoso de dar solução para problemas insolúveis, mas com muita freqüência descamba para um drible na moral, na lei ou na ética.

Tropicalizamos o deslize e vamos tolerando aqueles que nos parecem diminutos, socialmente inofensivos, sem perceber o efeito deletério do agregado disso no longo prazo.

No livro “Raízes do Brasil” o historiador Sérgio Buarque de Holanda identificou as origens do fenômeno. Segundo ele, o brasileiro carrega no seu DNA antropológico o traço da “cordialidade”, baseando sua postura mais nos laços emocionais e de parentesco do que nos institucionais, um reflexo da histórica fraqueza das nossas instituições, dando origem a vícios sociais como o nepotismo, o patrimonialismo (encarar o público como privado), além do famoso “você sabe com quem está falando”?

Não é a toa que o Brasil parece ser um dos raros países em que as leis podem ou não “pegar”.

Obter alguma forma de vantagem parece um desejo legítimo de qualquer pessoa, desde que isso não implique em prejuízo coletivo ou que essa vantagem seja indevidamente financiada por uma “desvantagem” alheia.

Claro que toda generalização é perigosa, e o Brasil, que vem mudando um bocado ao largo das últimas décadas, não é uma massa homogênea de malandros e espertos.

Um famoso estudo conduzido em 2004 e divulgado pela Royal Economic Society da Inglaterra ilustra um pouco a complexidade do assunto. Os autores conduziram um experimento científico em um restaurante, numa mesa com diversos amigos, testando o efeito no consumo individual de diferentes formas de pagamento. O teste mostrou que as pessoas tendem a consumir mais quando a conta será dividida entre todos do que quando cada um pagará pelo seu consumo individual. Os resultados ilustram um traço pouco nobre das pessoas. É possível supor que elas aumentam seu consumo porque imaginam que esse gasto “a mais” será diluído no bolso dos outros participantes, ou que se não o fizerem vão acabar pagando pelos exageros alheios, sendo esse comportamento uma maneira de levar vantagem individual sobre o grupo ou de pelo menos anular a vantagem dos demais.

Conheci um senhor, amigo da minha família, tremendo boa praça, mas um bocado sovina, que passava calor em casa para não ligar o ventilador, mas quando dormia em hoteis costumava deixar o ar condicionado ligado mesmo quando se ausentava por longos períodos do quarto, para que ao retornar encontrasse o quarto refrigerado, num desperdício que jamais toleraria caso fosse a sua casa.

Num dos meus primeiros empregos tive um colega de trabalho que disse que costumava fazer as necessidades fisiológicas no trabalho porque sentia que assim estaria sendo remunerado para realizar essa nada nobre atividade.

O hábito parece tão enraizado que tem gente que tenta tirar vantagem até de si mesmo. A função soneca do celular é um exemplo. Pra que ela existe? Só pra ter a sensação de que você tirou uma casquinha do sono, dormindo um pouco além do normal? Uma amiga chegou a confessar certa vez que consome até meia hora nesse ritual de acorda-e-cochila, sem perceber que estava roubando sono dela mesma.

Talvez não dê ainda para revogar a Lei de Gérson, mas o Brasil poderá ficar um bocado melhor na hora em que percebermos que a soma dessas pequenas espertezas individuais produz uma grande desvantagem coletiva no longo prazo, e que a verdadeira esperteza é ser correto.