QUIMERA

QUIMERA

No começo de 1985, recebi a ilustre visita do velho Rubem. Eu era um humilde discípulo e continuo tentando ser. Mas a amizade entre o tolo menino e o iluminado cronista, crescia a cada leitura, que se transforma em sonho daqueles que temos a impressão nítida de realidade, se tornando minha quimera. Apresentei a ele o tereré , que detestou no início, jogando longe o líquido amargo numa cusparada de cara amarrada:

- Que droga é isso?

Quando tentei explicar, ele remexeu a cuia, colocou mais água gelada e tornou a beber, sugando com mais força.

- Agora ficou bom!

Depois me encarou com seu rosto de rocha, as sobrancelhas formando expressão séria e mãos entreabertas, com o dorso do braço cobrindo a boca ainda pingando tereré.

- Você continua escrevendo?

Respondi sincero, vencendo a timidez.

- Escrevo todos os dias, mas não mostro pra ninguém.

Ele soltou um riso breve que logo eliminou, se fazendo novamente sério: o rosto de pedra estampado novamente à minha frente.

- Então você escreve só pra você?

- Não...Eu gostaria que as pessoas lessem meus textos, mas...

- Mas? – o rosto ainda mais de pedra.

- Tenho receio que não gostem, que critiquem, que me considerem tolo.

O breve sorriso se abriu novamente:

- Esse medo todos temos. Eu tenho, Neruda e Cervantes tinham.

E ficamos em silêncio por um breve período. Ele então apanhou de minhas mãos um punhado de guavira, que comeu lentamente, enquanto analisava, sem nada dizer, o gosto da fruta.

- É boa.

Quando expliquei que aquela fruta era exclusividade da minha terra, ele duvidou:

- Que nada. Já comi algumas nas matas de Cachoeiro.

Não quis confrontá-lo, mergulhado na ansiedade que a sua figura impoluta produzia em mim. Num dado momento, para meu assombro, esticou as pernas e subiu num pé de manga no quintal, apontando para uma fruta que só ele via; eu enxergava apenas galhos e folhas: “Olhe para aquela lá do canto. Está madurinha. Venha, me ajude apanhá-la!”. Eu quis subir naquela árvore, mas não consegui, barreiras surgiram do nada e fiquei estático, em pé, surdo e mudo no exato instante em que ele saltou ao chão, que ergueu uma poeira cinza, triunfante com uma manga madura nas mãos a me oferecer. Outros muros surgiram e eu não pude pegá-la. Queria apenas que ele compreendesse que eu era um menino – ah, eu era um menino em 1985! – e já havia lido quase tudo que ele escreveu. Tive vontade de pedir conselhos, sugar todo conhecimento daquela quimera que se erguia diante de mim, quem sabe o ar puro de Campo Grande fizesse ceder a montanha de conhecimentos. Acho que ele percebeu, pois do nada citou Tolstoi:

- Fale sobre sua aldeia, que você falará com o mundo inteiro.

E se calou no silêncio que durou preciosos minutos. Então, num daqueles vislumbres divinos, percebi o tanto que minha terra tinha a contar. E voei em pensamentos pelos bairros da minha infância: Taveirópolis, o Portão de Ferro, Caiçara, Guanandi, Taquarussu; fui além, visitei mentalmente Aquidauana, Piraputanga e o Pantanal. Percebi que o velho Rubem agora sorria um riso de canto de boca, contentamento que não fez questão de esconder. E ao fixar meus olhos nos dele, enxerguei duas cabeças gigantescas de animais diferentes; o leão e a coruja , a força e a sabedoria. Assustado, tentei apanhar de suas mãos o bilhete que ele escreveu, mas fui interrompido. Num gesto brusco, ele escondeu atrás de si a missiva enquanto lançava novamente em minha direção o olhar de pedra bruta, as sobrancelhas grossas e grisalhas arqueadas para cima e a ordem final:

- Leia depois, quando acordar!

E partiu sem se despedir. Acordei envolto numa espécie de espanto e encanto. Tudo não passou de um sonho. Talvez, se eu tivesse um pingo das letras do velho Rubem, procuraria perdida em alguma gaveta a frase que ele escreveu. Daí então compreenderia que jamais eu poderia deixar escapar de mim o menino lírico que pretendia ser para sempre. O tempo não volta e o presente me cobra. E acordei com o vento nos calcanhares, a imagem do velho Rubem refletida na mente, o corpo voando nessa irresistível vontade de escrever.