no espelho do tempo...memórias
pequena prosa poética
Nunca imaginei que envelheceria longe da aldeia, um dia subi para o combóio e perdi-me na distância, os pássaros adormeceram nos ramos do velho salgueiro, enquanto eu voava para mais longe, sentindo a falta do seu chilreio e dos figos que comíamos a meias...não tinha mais a possibilidade de ir ouvir o folhetim radiofónico na rádio duma amiga de nome Ermelinda, nem de ir buscar enfusas de água ao poço que transportava à cabeça sentindo-me um manequim numa passerelle, tão pouco ir lavar ao rio ou de sonhar perto das margens, tudo ficava ali, só eu partia...
Sonhos da adolescência iriam ter o seu epílogo, o amadurecer e o despertar para a ebulição da vida, mas meus olhos se afundavam na neblina à medida que me distanciava, meus sentidos eram mortalhas, quanto mais olhava a paisagem através da janela do combóio, mais o medonho dentro de mim, o meu mundo cedia e lá seguia enfrentando o caminho de olhar absorto até à cidade que me esperava, onde afinal era tudo um mito, mais estranho do que esperava.
Meus pés nunca tinham saído da aldeia, hoje a minha mente reúne pedaços de tempo bons e maus e este foi talvez dos mais difíceis, a sensação de que se está a fazer o correcto mas na iminência de se perder muito do que é nosso. Posso dizer que de certo modo dada a época fui muito arrojada ao partir sozinha, mais parecia uma criança transviada, a censura na aldeia persistiu durante algum tempo na boca da geração mais velha, mas graças ao bom Deus fui sempre equilibrada, com a noção da responsabilidade e bom senso. Minha avó já acamada ouvi chorar ía eu já ao fundo da rua, lá segui meu rumo vestida com o meu melhor traje e uma expressão no rosto voluntariosa sendo a decisão da partida inteiramente tomada por mim. Era Setembro, à chegada à cidade dias de chuva que interminável caía como grossas lágrimas que juntava às minhas. De noite sonhava um sonho idílico, o relvado à beira rio, o sol a bater-me no rosto e um ou outro amor que tinha deixado, e nem me apercebia como tinha dado um passo gigantesco no mundo feminino, onde a mulher não era dona da sua vontade. Presa ao solo da minha terra fiquei pelo afecto que ainda agora incandesce em mim... reclino-me no sofá e sorvo cada lembrança com medo de perder a memória à medida que o tempo escoa como um truque de ilusionista... agora, apenas desejo viver os sonhos encerrados no oculto da minha memória, sempre prontos a despertar, são eles que justificam a minha existência e fazem com que me sinta bem dentro deles. Estendo pontes fascino-me ao atravessá-las, no meio da bruma sinto emoções distintas, toco objectos, vejo imagens, ouço vozes e vejo-me no espelho do tempo... assim desta maneira simples através das lembranças que perduram em mim.
natalia nuno
rosafogo