Fragmentos

“Gente boa o ‘Já Morreu’. Grande sujeito. Um grande companheiro. Com ele na estrada a viagem sempre foi mais alegre”(deduzo que o “Já Morreu” partiu desta para melhor).

“Menina, o remédio que estou tomando para emagrecer é um tiro. Meu médico faz milagre. Mas a consulta é muito cara. O remédio também. Por isto estou dividindo com a fulana(por mais que minha indiscrição tente, não consigo decifrar o nome). Mas também, caminho todos os dias. Pensa que é fácil?”

“Aquela firma? Quebrou. Agora foi incorporada por outro grupo e fomos todos para o novo patrão. Mas tá de bom tamanho. Legal pra todo mundo”.(Enquanto isto, nomes de pessoas conhecidas e teoricamente respeitáveis vão sendo expostos, sem nenhuma cerimônia, ao longo da conversa).

“ - Oi, quanto tempo a gente não molhamos(sic) a palavra junto. Precisamos fazer isto mais vezes”.

- Pois é, responde a mulher, alguns tons acima na voz. Se esse raio de ônibus não tivesse sido tão pontual, teria molhado a palavra. Mas agora não tem jeito. Deixei uma tacho enorme de mocotó no fogão e preciso chegar logo em casa para aprontar tudo.”

Chega o seu ponto, a mulherzinha franzina que gosta de molhar a palavra desce e pega uma estradinha de terra batida, deixando o companheiro do breve percurso a elogiar a performance da colega, que molha a palavra com cachaça como poucos homens. “Uma grande companheira de copo”, conclui.

Nessas alturas, o colega do “Já Morreu” informa que ele mora no IBC, perto de sua casa. Então o suposto defunto está bem vivo. Conclusão precipitada a minha, a partir de um apelido bem sugestivo.

A intromissão involuntária na vida alheia acontece quando volto para casa de ônibus. Fico absorta pelos meus pensamentos por breves segundos, quando entra “Neguinho”, uma “figuraça”.

Negro, cerca de 75 anos, a alegria em pessoa, sai cumprimentando a todos desde a entrada até o final do ônibus. Certamente com a palavra molhada.

Descubro que neguinho não é ele. São todos os que cruzam o seu caminho. “ Vão com Deus, neguinhos. Se quiserem comprar uns porquinhos, galinha e ovos caipira , moro logo ali”. O recado foi dado.

Privacidade zero. Mas não dá para negar que em alguns momentos fica difícil segurar o riso.