Por ser criança...
"Sob um sol tão poético quanto ter de ajudar mamãe a tirar a mesa, ela e sua irmã estavam plantadas ao chão de grama desde que chegaram ali pela manhã. Como pedra esculpida, vestia um vestidinho quase como o da mamãe, e sua irmã parecia estar terrivelmente feliz por estar vestida como uma mocinha. Não entendia todas aquelas moças que pareciam adorar de forma equivalente aquelas medonhas roupas que lhes prendiam a cintura (e que as faziam parecerem cortinas, cortinas sem silhueta). Ao menos daquilo, mamãe a livrara. “gostando da festa?” perguntavam-lhe as mulheres mais velhas, e o “não” reprimido que havia aprendido a calar, não o seria se pudesse ser livre. Era pouco, apenas uma vista grossa para não fazer pouco caso do grande casamento, mas, ao contrário da irmã mais velha (que mantinha um estúpido sorriso no rosto e na cabeça cachos exagerados), ela estava descontente, presa, com toda sua poesia sufocada pela elite que se diz tão ávida de cultura. Enquanto a arte for sinônima de libertação, haverá poesia. Mas ali não havia libertação, evidentemente. Sua imaginação voava dentro daquela cachola cheia de cachinhos, mas os braços haveriam de estar alinhados ao umbigo, a postura reta, o sorriso singelo e a cortesia advinda do sobrenome, intacta. Fazia calor!
De repente parou para pensar. Olhou aqui e acolá, e reparou algo curioso: ao redor daquele minúsculo lugar onde estava, restava ainda algo muito grande, gigante! Sim, ela percebeu que saindo daquele bosque de flores bem distribuídas e cortinas ambulantes encontraria — para todo canto que olhasse — todo o resto do mundo. Bastava alguns passos à direita, e estaria livre. O mundo, que lugar incrível: tudo o que já de legal aconteceu, aconteceu nesse lugar que havia a dois passos à direita. Não cabe perguntar o porquê, mas a menina quis correr. E não apenas quis, correu! Dois passos à direita dados. Dois passos à direita e viu-se livre.
Estava, coincidentemente, no mesmo lugar onde um dia um feio tocou sinos; talvez, não sei, onde uma sereia cantarolou solidão.
Ainda pôde ouvir sua irmã chamando pela mãe quando a pedra agiu como água e fluiu à longe, a algum lugar que gostaria de ver como seria sua forma. Correu e correu e correu — como correu! Parou de correr quando se trombou a um lago, não, melhor, a todo um bosque. Tão pouca a distância e todo o mundo mudara. Ali não havia mesas, ali não havia cortinas ou véus. As flores estavam ali, mas tão mal distribuídas que mais parecia o cenário de um quadro mal pintado... Ah, agora entendera algumas obras que outrora vira no museu. Pássaros faziam fanfarra e ela sentia a terra sob seus pés. Do contrário daquela gente, quando passar a gostar de meninos e se casar com seu príncipe, se casará ali. Era ali seu lugar, era onde pertencia no tal instante. Neste instante sentiu água. Viu que o pé da saia já estava molhado, era refrescante. Pertencia àquele lugar, sentia isso. Aquele lago a sua frente, calmo, sereno, que só errava ao insistir em refletir a imagem da péssima imagem que sua mamãe via do que era uma criança cortês, correta, cultivável. Um lago que só errava ao refleti-la quando há tanto para refletir. Olhou a um lado, depois a outro — como estava quente... — ficou pelada!
Viu na sua nudez refletida naquelas águas, que agora se remexiam com o correr da menina para juntar-se a elas, mais poesia que toda a etiqueta de burguês que carregava já desde o berço. Era um descuido da sua razão, mas um carinho do seu prazer, como um breve descanso, tão merecido, depois de tanta pretensão. Entrou no lago com uma corrida de sua natureza — agora sim poética — que a fez depois passar a toda uma tarde por ali a brincar, e depois outra a lavar o surrado vestido; passou a tarde nesse brincar, e mesmo que sozinha, feliz, como uma criança deve o fazer, e como uma criança deve ser! Mas que aquilo estragou todinho o vestido de renda, estragou.
Fez arte, enfim, como toda gente deve o fazer.
Passado o casamento quase arruinado pelo sumiço de uma criança de família, de sobrenome, a menina foi-se ao encontro deles, que estavam a procurá-la por onde achariam que ela poderia querer ir, mostrando quão ineficaz era os moços suarem seus ternos bonitos, à sua procura. Com um sorriso no rosto, sorriso que os pais fariam questão de tirar-lhe e esconder onde só poderia a menina encontrar em um mês, ela apareceu. Contou-lhes que encontrou um sapo no lago, aninhava-o no braço, mesmo estando ela (poeticamente) aninhando-se nele. Acharam, pois, o causador daquele sorriso infernal. Tinha lama no cabelo — e até dentro das orelhas! Que desastre. Se é de praxe que a estiada precede a tempestade, dessa vez foi o oposto. O sapo não ganhou um lar, apenas foi tirado do lago e largado em uma pedra qualquer, e nem preciso lhes dizer das tantas palmadas que a menina levou. Ai!
Passariam-se anos, e ela não se arrependeria. Mas que falta fazia-lhe o sapo. Amara-o"