Em todo e qualquer canto da cidade

Em toda e qualquer canto da cidade, a lua esmerilhando os seus olhos, adivinhações à parte, mas nenhuma acertada ou acometida de razão plausível. Outra noite recheada, em qualquer parte da cidade. Não dormiu. Amanheceu. E o vento amornado alisava os seus cabelos finos, distraia-se tentando acompanhar todas as folhas arredias, porventura varridas como num outono extasiado.- Tudo ao seu tempo, ela murmurava... Agora já é quase primavera. Em todo e qualquer canto da cidade.

Vestiu-se num shortinho e camisetinha com os chinelos havaianas, para acompanhar as gaivotas bem de perto lá na praia de São Conrado, e até uns pombinhos bestas apareceram para ciscar para lá e para cá, - criaturinhas engraçadas, - são avezinhas tão desprezadas... em todo e qualquer canto da cidade.

Estirou-se na areia fina da praia e contemplou um sol convidativo, porém tímido ainda. Percebia agora o quanto as gaivotas mergulhavam para apanharem o seu alimento, - tadinho dos peixes... é a cadeia alimentar, podia dizer sem afirmar que, todo e qualquer ser alimentando-se de água que contém o necessário, sobreviveria à sua espécime, digamos... não que fosse naturalista nata, mas sem a nata é mais sequinha. Sem ironias. Em toda e qualquer canto da cidade.

Arriscou alguns desenhos bobos na areia, fez gente de palitos, fez gatos de forma cônica, casinhas de tirinhas, hilários pra cacete! Sorriu bem lenta como se quisesse também experimentar o sabor do ar - sem nada no estômago... - Alguns pensamentos soltos, alguns pensamentos loucos e ela ali... tentando desenhar o arco-íris com o pote recheado de ouro, mas a espuma marinha o apagou. Deletou aquele instante. Em toda e qualquer canto da cidade.

Deu uma passadinha bem rápida na lagoa Rodrigo de Freitas, e admirou os pedalinhos com as suas formas de deslizantes cisnes. Engraçado, sorriu imperceptível e não muito perspicaz trombou contra a árvore. Sorriu envergonhada e displicente. Acomodou-se pelos cantos da Lagoa e sorriu mais uma vez quando o sol já desmontava a claridade da paisagem. Imaginou uma lâmpada se apagando vagarosamente. Em todo e qualquer canto da cidade.

Voltou para casa, deparou-se com a pilha de copos em cima da pia, deprimiu-se imaginando ébrios e beberrões acolhidos dentro daqueles copos. Não quis tomar água. Não quis tomar um suco de goiaba. Não, não quis quase nada. Caminhou lenta até o banheiro e olhou-se no espelho, não sorriu mas mostrou a língua. Cobriu o reflexo com a toalha de rosto. Não quis se despir, mas arrancou as roupas de uma só vez. Caminhou até a sala e espalhou-se no sofá de rodinhas, sorriu melancólica e ainda teve tempo de ligar a TV naquele programa escroto "Casos de família"onde as pessoas aparecem sem os dentes e riem com o sorriso aberto, caiu na gargalhada e pensou : - quanta gente fo - -! Se enroscou sobre as próprias pernas em posição fetal e adormeceu. Acordou sentindo a língua da sua gatinha a lamber-lhe o pescoço. Imaginou um beijo de língua. Pensou num beijo no ventre. Pensamentos soltos e abrasivos. Conto de fadas de alguém. Pensou mais uma vez o quão deleitável seria trancar os pensamentos em gaiolas, aprisioná-los bem no fundo dos alçapões. Nada de tiranias, nada de deboches, mas apenas queria sorrir sem permitir tantas divagações como naquele dia. Em todo e qualquer canto da cidade.

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 10/09/2014
Reeditado em 10/09/2014
Código do texto: T4956729
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