GRATIDÃO
Noite de sexta-feira, em dois pontos da cidade, duas pessoas totalmente diferentes, porém velhos conhecidos terão seus destinos cruzados dentro de algumas horas. Marcelo de Moura Anthor, um mé¬dico recém-formado em uma das universidades mais tradicionais, está saindo de uma festa de comemoração pela colação de grau em companhia de sua namorada. Depois de muito se divertirem, resolvem encerrar a noite em um motel. Muito apaixonado, Marcelo é um rapaz tranquilo, não consome bebidas alcoólicas e tem verdadeira aversão pelas drogas ilícitas, tanto por ser de boa índole quanto pelo drástico motivo de ter um primo drogado que, por várias vezes, roubou a família e cometeu vários crimes para sustentar o maldito vício. O próprio Marcelo, por várias vezes, tentou ajudá-lo a se livrar desta condição deplorável. Com internações em clínicas de desintoxicação e orientação através de órgãos de ajuda, como os Narcóticos Anônimos. Mas, infelizmente, tudo em vão. Marcos era dependente químico usuário de drogas pesadas, como heroína e crack, há mais de dez anos. E, além disso, não acreditava que fosse possível se curar. Abandonado pelo pai ainda criança, e tendo presenciado a mãe ser assassinada em um assalto, nunca teve as mesmas oportunidades de seu primo, e isso de certa maneira o incomodava muito, a ponto de, algumas vezes, demonstrar uma inveja exa¬gerada e, a certo ponto, estranha aos olhos de muitos que presenciavam seus comentários secos e venenosos em relação ao primo médico.
Marcos Lúcio teve o primeiro contato com as dro¬gas no colégio onde cursava o ensino médio. Através de um colega de classe, foi apresentado a um cigarro de maconha em uma dessas festas de adolescentes, como era um jovem muito deprimido e sem orientação pater¬na, já que era criado por uma tia, irmã de seu pai, cujo as condições financeiras não eram muito confortáveis, não foi difícil combalir aos efeitos do entorpecente. Na infância, fora criado com o primo Marcelo, mas uma briga entre as famílias fez com que Marcos fosse mo¬rar com sua tia. Da maconha para cocaína, da cocaína para a heroína, da heroína para o crack, do crack para o reformatório. Aos quinze anos, em uma tentativa de assalto, foi preso junto com dois comparsas, como não tinham dinheiro para sustentar a paranoia, praticavam pequenos furtos. Passou dois anos preso, quando saiu, sua tia já não morava no mesmo lugar, como não recebia muitas visitas, apenas o primo o visitava, não sabia do paradeiro de sua tutora. Novamente foi Marcelo quem o ajudou. Alugou uma quitinete e pagou um curso de enfermagem para o primo, tinha ideia de montar um consultório e queria que Marcos fosse trabalhar com ele como assistente.
No início, tudo corria bem, Marcos frequentava o curso sem faltar nem sequer um dia. Quando saia do curso, ia para casa descansar. Sua vida estava indo vento em popa. Certo dia estava no ônibus, voltando de mais um dia de curso, quando é anunciado um as¬salto. Dois jovens armados com pistolas dão a palavra de ordem, uma frase muito familiar, “não adianta rezar, porque eu vou passar a sacolinha”, essa familiaridade era tão expressiva, considerando que foi ele mesmo quem a criou no primeiro assalto, e, desde então, esse passou a ser o seu grito de guerra em todos os delitos por ele praticado. Seu corpo estremeceu, pensou “por que agora?”. Logo agora, quando estava se estabelecendo, que sua vida estava tomando um rumo, não, não podia ser. Infelizmente o que tanto ele temia era real. Ao ser reconhecido pelos antigos parceiros de delitos, Marcos deu um sorriso sem jeito, recebeu ordem para entregar seus pertences, por um instante, pensou que não fora re¬conhecido, mas, baixinho em seu ouvido, foi convidado a reaver seus pertences, bastava ir até o antigo esconde¬rijo, que seria entregue a ele todos os objetos roubados. Marcos não queria em ir ao encontro dos dois, porém, sua carteira com documentos e dinheiro estava nas mãos dos bandidos, e ele precisava deles para chegar a casa. Chegando ao local muitas vezes frequentado nas épocas negras, sentiu uma forte sensação que misturava medo e ansiedade, ele sempre imaginou como seria retornar aquele lugar, começou a lembrar das drogas e das orgias. Ficou angustiado. Foi tomado por uma força que o empurrava para fora daquele lugar. Decidiu correr, sair dali. Quando se virou para a saída, na penumbra daquele lugar sombrio, surgem dois espíritos sem luz. Libertos recentemente, seus dois antigos parceiros lhe devolvem carteira com os documentos e todo dinheiro, e o cumprimentam com bastante respeito. Convencidos de que o trio está novamente formado, começam logo a traçar planos para novos assaltos. Marcos começa a dizer que não quer mais essa vida, que sua vida mudara e que seus planos para o futuro já estavam traçados, trabalharia como assistente de seu primo. Como que por uma possessão, os dois indivíduos começam a rir de Marcos, uma gargalhada grotesca. Zombam de ma¬neira ininterrupta e diabólica. Começam a fazer renascer todos os sentimentos mesquinhos que Marcos outrora cultivava por Marcelo. Muito confuso, com todo aquele ódio no coração, ele foge em disparada, correndo como um louco, passa pelos automóveis, cruza avenidas. Na sua mente, somente a vontade de se vingar. Queria matar todos, principalmente seu primo, que tanto lhe ajudou. Muito desorientado, para em um bar e pede uma bebida, pede outra e outra, segue em direção a sua casa, pega a arma que tinha guardado desde que saiu do reformatório, colocou-a na cintura e foi para rua. Para próximo a um semáforo, que, no momento, fica vermelho. Um carro para no sinal. Era o carro de Marcelo. Avistando Marcos na calçada, Marcelo sai do carro e vai ao encontro do primo, sem imaginar que o mesmo está armado e deseja matá-lo. Ao aproximarem-se, Marcos saca a arma e aponta para Marcelo, que cai de joelhos e não consegue dizer uma palavra sequer. No momento em que Adriana sai do carro, Marcos se assusta e dispara acidentalmente acertando o peito de Adriana. Marcelo, tomado pelo desespero, agarra Marcos na tentativa de lhe tomar a arma, de súbito, mais um tiro é disparado. Marcos cai no colo de Marcelo, que, rapidamente, põe o primo e a namorada no carro. Ambos ainda com vida. Leva-os para o hospital e tenta salvar a vida do primo, enquanto em outra sala, outros médicos salvam a vida de Adriana. A bala atravessou o pulmão de Marcos, causando uma hemorragia que Marcelo não conseguiu controlar. Marcos morre em seus braços.
Em homenagem ao primo, Marcelo dá o nome de Marcos Lúcio à clínica que montara o que surpreende a todos, já que o primo tentou matá-lo. Marcelo, porém, diz que sempre se sentiu responsável pelo primo, e que, quando era criança, estava brincando com Marcos e quase foi atropelado, e só se salvou por que seu primo o empurrou e acabou sendo atropelado em seu lugar, lhe custando um braço e uma perna quebrada. Este acidente foi o motivo que gerou a briga entre as famílias, separando-o de Marcos. Uns querendo culpar os outros pelo atropelamento. Por isso, tinha essa eterna dívida de gratidão com o primo que o livrou de ser atropelado. Marcelo sempre dizia que, se as pessoas passassem a ter mais gratidão, com certeza o mundo seria bem melhor.