Todo Errado

Chove, e ele na janela observava os carros passando por cima das poças, molhando os pedestres que fugiam da chuva. Da sacada estreita do prédio antigo de dois andares, ele observava a rua larga e comprida que passava diante da janela.

Seu olhar, agora perdido, fugia para outras tardes. Tardes onde sorria, onde se via satisfeito com tudo e todos, mesmo sendo triste em períodos de brigas e desentendimentos corriqueiros. Agora, sua vida havia mudado. Outra casa, outras pessoas o cercavam. Sentia-se estranho mesmo estando entre os seus. Sentia-se, como se pode dizer? Um peixe fora d’água.

Era assim que sua vida seguia. Sem cor. Sem saber como e onde procurar aquilo que o ocupasse. Televisão, internet, coisas fúteis que já não o entretêm. Coisas que, na verdade, tiravam sua alegria de viver mostrando o quão distante da realidade ele estava com aquelas pessoas e objetos virtuais.

Sentou-se no sofá e abriu um caderno. Quis escrever, porém não tinha ideias. Quis sair, porém não tinha dinheiro. Abriu o guarda-roupa e encarou seus casacos. Abriu duas gavetas da cômoda de Mdf, e retirou algumas bermudas. Pensou vagamente em sumir. Em ganhar o mundo e aprender a se virar com o que lhe tivesse ao alcance. Não queria mais depender de ninguém, mesmo que esses ninguens fossem seus familiares. Estava frustrado com sua vidinha medíocre. Estava frustrado com o rumo que sua vida havia tomado.

Todos antigamente o aplaudiam. Todos diziam: “Um dia você chega lá! Um dia sua hora chega! Tenha fé!”... Fé? Ele já não tinha mais fé. Ela havia se perdido quando saíra de casa. Quando vira que sua própria família se voltara contra ele, e apenas queria defendê-los de si próprio. Estava assistindo na posição de espectador, a sua família ruir. Os membros brigando e ofendendo-se entre si. Perdendo-se num mar de ódio. Familiares... Inimigos... Vilões de si próprios.

Abriu sua mochila e pensou em colocar algumas roupas lá dentro. Pensou em onde iria, por quais lugares passaria. Onde conseguiria estada? Onde conseguiria um aconchego e a tranquilidade que buscava durante toda sua juventude. Cansou-se de procurar suas qualidades. Cansou de escutar pessoas que o apontavam como alguém com um futuro brilhante, pessoas que nunca o estenderam o braço para ajudá-lo.

Cansou de si mesmo...

De repente, a porta do apartamento sua abriu. Uma senhora de estatura baixa e carregando diversas bolsas de supermercado, dividindo seus pesos em ambos os braços, entrou sorridente e muito suada. Anunciou que faria fígado cozido para a janta.

Ele respirou fundo. O oxigênio entrou em contato com seu organismo e queimou-se rapidamente. Ele tentou expulsar os pensamentos. Apenas passou o nó do dedo sobre o olho esquerdo, bocejou, e foi ajudá-la com as bolsas. Por enquanto não havia mais nada a ser feito.

Por enquanto, mesmo que soubesse que estava num lugar certo, onde era querido e admirado. Nada o faria o sentir certo. Para ele, sempre seria o filho errado.

FIM

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 09/09/2014
Código do texto: T4955988
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