Ruídos Estranhos

Os dois moleques estavam genuflexos, com as mãos no chão e o ouvido grudado no assoalho da casa. Embaixo ficava o quarto dos pais, melhor dizendo, o quarto da mãe. Caio, o irmão mais velho, talvez nunca entendesse a razão pela qual o pai partira naquela madrugada chuvosa. Tudo aconteceu de repente. No meio da noite ouviu-se uns berros vindos da cozinha, pratos de encontro ao piso e algumas palavras ofensivas. Pobre do Juquinha! Seus cinco aninhos não permitiram que ele percebesse toda a maldade ao seu redor. Achou até bonito o velho dizer, e repetia a miúdo: “Quenga dos Diabos!” Justo naquela data completavam três anos de saudades.

- Ouve só Caio, eles tâo fazêno aqueles ruído estranho outra vez.

- Coitada da mãe! O que será que dói tanto?

- Deve ser aquelas pedrinha que ela tem nos rim.

- Vamo descê até lá pra vê?

- Mió não. O Sinhô é brabo, pode castigar a gente.

Depois de uma meia hora não se escutava mais nada. Os meninos voltavam para a cama, intrigados. No dia seguinte, todos punham-se à mesa para o café da manhã.

- Tá olhando o que, moleque?

- Não fala assim com o garoto, homem!

- Desculpa, Sinhô.

Juca, coagido, jurava sempre para o irmão que interrogaria a mãe e o padrasto sobre os tais rumores no limiar do dia, entretanto, ficava calado observando o moço. A verdade é que lhe dava medo aquele olhar sombrio do sujeito.

Seu Arnaldo Champollion era um aristocrata francês. Comprara há alguns anos a antiga fazenda “Recôncavo do Sol”, onde ergueu o seu império cafeeiro. Começou a se relacionar com a filha de um outro fazendeiro que possuía terras vizinhas à sua propriedade, a bela Júnia. A moça havia sido expulsa de casa devido ao seu indecoroso caso com um seleiro da região. Caso que resultou em um casamento e dois saudáveis filhos, mesmo com todo aquele despotismo do pai. Mas acontece que nada nesta vida é para sempre, nem o sublime amor entre uma Sinhá e um humilde descascador de couros. Um dia a jovem se cansou do cheiro da cola e do barulho do martelo, fez as malas e surpreendeu o marido numa noite tempestuosa.

- Não, você não vai sair. Quem irá definitivamente sou eu. Não vou viver aqui com seu fantasma atazanando meus pensamentos, sua quenga dos diabos!

Bateu a porta e se foi o coitado do seleiro, deixando ali dois pedaços de sua alma.

Sem dúvida o café cheirava bem menos do que a cola usada para grudar o couro, mas era um café amargo. O Sinhozinho detestava os garotos. Dizia que não eram filhos seus, portanto, não tinha nenhuma obrigação de ajudá-los. Apesar da riqueza, levavam uma vida cheia de privações. Não podiam estudar, pois, as escolas ficavam todas na cidade e o percurso era longo.

Novamente escurece.

- Juquinha, cê ouviu?

- Ouvi sim, Caio!

- Parece que hoje as dor tão mais forte!

Passada meia hora, somente o canto das cigarras seria percebível no interior da vivenda. As crianças voltariam para a cama com a curiosidade incitada, contudo, Juca não temeu a proposta do irmão naquela noite. Decidiram descer e averiguar o mistério.

Abriram a porta do quarto onde dormiam, verificaram o corredor, não viram ninguém, então, caminharam em direção à escada. Foram descendo os degraus na ponta dos pés, cautelosamente. Enquanto isso, os gemidos aumentavam nos aposentos da mãe, adentrando cada vez mais fortes nos ouvidos dos meninos.

- Escuta Juca, o baruio da cama se mexeno!

- Tô ouvino, meu irmão! Lembra do que disse o seu Maneco?

- Quem?

- O seu Maneco, que traz o leite pra nossa mãe.

- O que ele disse?

- Ele falô que algumas veis os espírito do mal entra nas pessoa! E se tivé tomado nossa mãe?

- Bestera!

Após sussurrarem estas palavras, os irmãos chegaram na sala. O dormitório do casal ficava ao lado do escritório onde o Sinhozinho costumava encarcerar-se para fumar charutos e analisar os lucros da fazenda.

Continuaram caminhando feito gatos até alcançarem a porta do cômodo.

- Vai Juca, bate na porta.

- Eu não, bate ocê!

- É mió a gente oiá pelo buraco da fechadura primêro.

- Então, óia logo, Juca!

- Óia ocê!

- Tá bom. Vô oiá, mas só porque sou o mais véio.

Caio meteu o olho no orifício da fechadura desejando ver o que estava acontecendo, mas voltou às pressas e em prantos para o seu quarto. Juquinha também ficou bastante alterado quando defrontou-se com aquela depreciável cena, ainda assim, tentou acalmar o irmão.

- Não chora, Caio! A mãe vai nos explicá tudo!

Decorridos alguns minutos, o médico, de pé na porta da casa, fazia as últimas recomendações ao Senhor Champollion.

- Achei melhor deixá-la sob efeito dos sedativos. Já descobrimos o que ela tem. Prometo que em poucos dias sua esposa estará curada.

- Obrigado doutor. Passar bem.

- Passar bem.

Barbosa, Lauro Gabriel.

Crônicas Cômicas / Lauro Gabriel Barbosa. - 2006.