Rio de Luz
Rio de Luz
Numa tarde ensolarada Salvador chegou a conclusão de que seu grande sonho na idade madura era ter uma sala. Suntuosa não, luminosa sim, mas sem sol incidente, clara como uma pétala branca, com quadros coloridos nas paredes, sofás, prateleiras com livros, uma mesa em local certo, numa rua calma.
Pessoas tem projetos ou dramas. Salvador quer silêncio. O bom silêncio de uma tarde sombreada por árvores e ornada com pássaros comedidos.
Certa vez passou o dia numa casa assim. Ele simplesmente não conseguia sair de lá. Ficava olhando pelas janelas grandes a paisagem próxima, feito uma criança. Lembrou-se de sua infância e sentiu imensa gratidão. Foi uma boa infância. Um pouco solitária, as vezes, mas reconheceu a beleza de todos os lugares em que esteve e do carinho acalentado pelos nichos antigos que estavam a sua espera antes de serem demolidos. Nessa época ele não sabia o que queria da vida.
Ontem pegou-se em idêntica questão. Não há paz que possa abrandar seu coração nem refeição que sacie sua fome. A cada minuto identifica tudo como um local estranho.
Pessoas tem passados lisos como mármore. Não todas. Salvador gosta de dizer, quando está disposto, que seu passado é seu professor.
Poucos amigos. Talvez tenha sido assim a vida inteira. Muitos conhecidos, sempre aspirando uma conexão quando estava no meio deles, ontem pensou nisso, sentado no banco de um pequeno bosque, olhou para a folhagem e se imaginou num útero. Sairia dali de bom grado, se pudesse ficar pelo tempo necessário. Teria de sair para abraçar a vida, porém antes, urge se perdoar pela própria vida que tivera.
Pessoas tem paixão. Salvador cultiva distâncias com critério. Ah, a genuína paixão da alma.... Onde está a sua? Escondida, encoberta, hipnotizada, programada, colocada embaixo, esquecida.
Ontem foi domingo. Agradeceu imenso pelos últimos domingos que permitiram-no tornar-se criança por horas e horas, quando brinca de assoviar, contar janelas, olhar o crepúsculo como a si mesmo, talvez se despedindo de alguma coisa que irá marca-lo profundamente. Enquanto esse dia não chega suas calças são curtas e sua mente divaga. Houve domingos, em anos não muito distantes, em que se tornava uma penumbra ambulante observando coisas sem compreendê-las.
Ontem não foi assim. Ele leva na mochila um caderninho de capa azul com folhas brancas sem pauta. Pôs-se a anotar coisas para escrever um dia: Ultréia quer dizer ânimo na vida e suseia significa a ligação com o Ser Supremo. Energia feminina=ser. Energia masculina=fazer. Etc.
Salvador sibila que em nenhum céu a moeda corrente é o sofrimento. Não obstante....
Há pouco mais de um ano seu grande programa traduz-se em apagar a luz ao anoitecer e emaranhar-se em pensamentos. O que foi tudo isso? - indaga-se, medindo a jornada desde o que se lembra até o difuso agora. Nem sempre isso lhe apraz. Noite dessas uma dor fininha, aguda como uma nota soando baixo e insistente lhe dizia que repetira ensinamentos, mecanizara caridades, fugira assustado do afeto e que em hipótese alguma soubera amar, completamente jamais, esboçadamente, quem dera. O que fora então, até agora? Uma mentira seria uma resposta prosaica, embora bem próxima de ser precisa.
Salvador hoje foi cortar o cabelo. Externou sua conclusão sobre a mentira, ao que o barbeiro lhe respondeu: "enquanto a mentira já deu a volta ao mundo, a verdade ainda está calçando as botas".
O que ele mais gosta nesse programa é sair dali seguindo a calçada. Com passos e passos, sem mudar de margem, chega-se em poucos minutos a um local acolhedor, com grama e árvores.
A resposta do barbeiro estava fora de contexto. Teria sido proposital, para desviar sua atenção e assim transmitir coragem?
A civilização lhe parece desagradável, enredos cheios de morte, sobrevivência encarniçada, armas de destruição em massa, torturas, penas, ele andou sob as árvores imaginando-se num rio, que sussurrava coisas novas como sabedoria do entendimento, energia de cooperação, diferentes conjuntos de idéias funcionando sem necessidade de um controle central, o rio desliza indo de encontro a super lua de setembro, por um instante Salvador se perdoa sentindo saudades de tantas pessoas, ele anda sem pressa e imerso num rio de luz que lhe dita calmamente que chegaremos a um acordo global de consciência e que ele, Salvador, aprenderá a amar para fazer parte disso.
(Imagem: Yayoi Kusama, Chuva Noturna, Screen Print, 1998)
Rio de Luz
Numa tarde ensolarada Salvador chegou a conclusão de que seu grande sonho na idade madura era ter uma sala. Suntuosa não, luminosa sim, mas sem sol incidente, clara como uma pétala branca, com quadros coloridos nas paredes, sofás, prateleiras com livros, uma mesa em local certo, numa rua calma.
Pessoas tem projetos ou dramas. Salvador quer silêncio. O bom silêncio de uma tarde sombreada por árvores e ornada com pássaros comedidos.
Certa vez passou o dia numa casa assim. Ele simplesmente não conseguia sair de lá. Ficava olhando pelas janelas grandes a paisagem próxima, feito uma criança. Lembrou-se de sua infância e sentiu imensa gratidão. Foi uma boa infância. Um pouco solitária, as vezes, mas reconheceu a beleza de todos os lugares em que esteve e do carinho acalentado pelos nichos antigos que estavam a sua espera antes de serem demolidos. Nessa época ele não sabia o que queria da vida.
Ontem pegou-se em idêntica questão. Não há paz que possa abrandar seu coração nem refeição que sacie sua fome. A cada minuto identifica tudo como um local estranho.
Pessoas tem passados lisos como mármore. Não todas. Salvador gosta de dizer, quando está disposto, que seu passado é seu professor.
Poucos amigos. Talvez tenha sido assim a vida inteira. Muitos conhecidos, sempre aspirando uma conexão quando estava no meio deles, ontem pensou nisso, sentado no banco de um pequeno bosque, olhou para a folhagem e se imaginou num útero. Sairia dali de bom grado, se pudesse ficar pelo tempo necessário. Teria de sair para abraçar a vida, porém antes, urge se perdoar pela própria vida que tivera.
Pessoas tem paixão. Salvador cultiva distâncias com critério. Ah, a genuína paixão da alma.... Onde está a sua? Escondida, encoberta, hipnotizada, programada, colocada embaixo, esquecida.
Ontem foi domingo. Agradeceu imenso pelos últimos domingos que permitiram-no tornar-se criança por horas e horas, quando brinca de assoviar, contar janelas, olhar o crepúsculo como a si mesmo, talvez se despedindo de alguma coisa que irá marca-lo profundamente. Enquanto esse dia não chega suas calças são curtas e sua mente divaga. Houve domingos, em anos não muito distantes, em que se tornava uma penumbra ambulante observando coisas sem compreendê-las.
Ontem não foi assim. Ele leva na mochila um caderninho de capa azul com folhas brancas sem pauta. Pôs-se a anotar coisas para escrever um dia: Ultréia quer dizer ânimo na vida e suseia significa a ligação com o Ser Supremo. Energia feminina=ser. Energia masculina=fazer. Etc.
Salvador sibila que em nenhum céu a moeda corrente é o sofrimento. Não obstante....
Há pouco mais de um ano seu grande programa traduz-se em apagar a luz ao anoitecer e emaranhar-se em pensamentos. O que foi tudo isso? - indaga-se, medindo a jornada desde o que se lembra até o difuso agora. Nem sempre isso lhe apraz. Noite dessas uma dor fininha, aguda como uma nota soando baixo e insistente lhe dizia que repetira ensinamentos, mecanizara caridades, fugira assustado do afeto e que em hipótese alguma soubera amar, completamente jamais, esboçadamente, quem dera. O que fora então, até agora? Uma mentira seria uma resposta prosaica, embora bem próxima de ser precisa.
Salvador hoje foi cortar o cabelo. Externou sua conclusão sobre a mentira, ao que o barbeiro lhe respondeu: "enquanto a mentira já deu a volta ao mundo, a verdade ainda está calçando as botas".
O que ele mais gosta nesse programa é sair dali seguindo a calçada. Com passos e passos, sem mudar de margem, chega-se em poucos minutos a um local acolhedor, com grama e árvores.
A resposta do barbeiro estava fora de contexto. Teria sido proposital, para desviar sua atenção e assim transmitir coragem?
A civilização lhe parece desagradável, enredos cheios de morte, sobrevivência encarniçada, armas de destruição em massa, torturas, penas, ele andou sob as árvores imaginando-se num rio, que sussurrava coisas novas como sabedoria do entendimento, energia de cooperação, diferentes conjuntos de idéias funcionando sem necessidade de um controle central, o rio desliza indo de encontro a super lua de setembro, por um instante Salvador se perdoa sentindo saudades de tantas pessoas, ele anda sem pressa e imerso num rio de luz que lhe dita calmamente que chegaremos a um acordo global de consciência e que ele, Salvador, aprenderá a amar para fazer parte disso.
(Imagem: Yayoi Kusama, Chuva Noturna, Screen Print, 1998)