Namastê na Canastra...(EC)
Nota: O presente texto foi totalmente escrito online durante conversa sobre o tema proposto “Namastê”. Resolvemos, num repente inspirador, inovar na forma de se falar de um assunto do qual pouco conhecíamos, ou seja, decidimos que Charles Lucevan interpretaria “Deva Shakti” uma Indiana de passagem pelo Brasil e Maria Mineira, o personagem “Bastião”. Um caipira surpreendido pela exótica e inesperada visita à sua humilde propriedade rural em São Roque de Minas – MG.
Demos asas aos nossos personagens para serem, agirem e pensarem livremente de uma maneira a não interferir no personagem do outro.Foi muito divertido, dois autores escreverem distantes mais de dois mil km, sem se conhecerem pessoalmente. Assim obtivemos de ambos reações naturais. Gostamos do resultado e esperamos que vocês também se divirtam. Namastê
Namastê na Canastra
Deva Shakti, natural de Chandigarh, capital do estado de Haryana, fora convidada pela UFMG como palestrante. O tema seria os costumes de seu país. De estatura mediana, pele morena, olhos ligeiramente claros, a indiana usava roupas coloridas e comportadas. Como adereço, uma argola metálica presa ao lado de uma das narinas. Os cabelos longos desciam pelas costas em forma de trança cobertos parcialmente por um lenço tão matizado quanto suas roupas.
Antes do regresso à terra natal, a moça resolveu visitar a região da Serra da Canastra no Sudoeste mineiro. Encantou-se ao conhecer pela internet, imagens das cachoeiras, fauna e flora do lugar. Mesmo sem falar quase nada do português, embarcou no primeiro ônibus com destino a Serra.
Viajou sem reservar hotel, sem conhecer ninguém. Decidida a perambular ao acaso e se enturmar com os moradores locais. Falaria por gestos e sorrisos, confiante na hospitalidade mineira que tanto lhe falaram e mostraram em Belo Horizonte. De volta a sua terra organizaria uma caravana com seus amigos para virem passear na região.
Em São Roque de Minas conseguiu contratar um serviço de táxi e apontou para a serra indicando o caminho. Nas encruzilhadas da estrada ela acenava na direção desejada, escolhendo as paisagens mais interessantes.
Chegou numa casinha ao pé da serra e fez um gesto para o taxista parar e espera-la. De alguma forma ele entendeu a sua vontade.
— Namastê!
— Sim, dona cigana, eu já sei que vô tê que isperá. Podexá qui num vô simbora!
Deva Shakti caminhou até a moradia e sorriu para um cachorro que lhe latia aos pés, mais pra mostrar serviço que para pegar. O dono da casa apareceu na soleira da porta ralhando com o cão e ordenando-lhe que fosse se deitar.
—Namastê!
Bastião se aproxima tentando apurar as vistas, mas de longe já tinha a certeza de nunca ter visto aquela dona.
— Namastê! – Repetiu a moça.
— Du jeito qui ela sigura a boca du istâmo deve di tá percurano argum chá pra curá úrça, ô quemação... Mas ieu num me alembro di tê cunhecido essa tar de erva namastê.-pensou Bastião encabulado.
—Esse tróço qui a sá moça percura é pranta de fazê chá?
Esticando a vista vê o primo no velho taxi e indaga:
— Ô Chico, quem essa moça qui ocê troxe aqui in casa?
— Ieu é qui vô sabê, Bastião? Ela vei vino, vei vino e de repente apontô a portera e mandô ieu pará. Achei qui ocê cunhecia?
— Namastê – repete a indiana sorridente.
Encabulado por ser conhecedor de todas as plantas curativas da Canastra, ficou incomodado de não ter nunca visto falar dessa “namastê”. não queria passar vergonha de dizer que não conhecia e se saiu com essa:
— Bas tarde dona moça! Adiscurpa ieu, mas essa daí cabô, não mais tê!-Disse rindo do próprio trocadilho e abrindo a porteira para a dona sair do sol quente e adentrar na casa.
Ela fez a saudação e espera o cumprimento de volta, repetindo o gesto com as mãos unidas na altura do peito. Ele estende a mão num cumprimento e ela ingenuamente lhe estende uma mão de volta pra ele cumprimentar num aperto torquês que quase lhe arrebenta todos os ossos.
—Dia! Bamo cabá de chegá mode tumá um cafezim, ô uma caneca d’ água! Entra tamém, primo Chico!
—Namastê! –Disse acariciando as mãos doloridas, acompanhada pelo Chico.
Tião coça a cabeça:
—Discurpa ieu num tê! Mais bamo entra pá dentro, soli tá quente.
—Atcha! O Sinhôra és mui educadinha! Disse ela tentando a sorte no português, mas sem ter muita certeza de estar falando corretamente.
—Êpa, êpa, dona moça! Sinhora não! Ieu sô macho pá daná! Envém aqui percurá remédio pra dô nu instâmo, ieu num tenho, aí a sinhora acha de ofendê ieu? Uai!
—Arebaguandi! Mais o que foi que eu fazer pra sinhôra ficar ton irritadinha?
— Óia dona, ieu sô home inducado! Nunca na vida desfeitiei ninguém na minha casa, mas se ficá duvidano da minha macheza o trem num vai prestá!
—Qui ser "desfeitei"?
—Desfietiá é o que a senhora tá fazeno cum a minha pessoa, me chamano de “sinhora” e falano essas linguage estranha.
—Linguage estranha?
— É esse tróço daí, é, alê... bá... gundi... Quié qui ocê quis dizer cum isso?
—Ah! Arebaguandi significa: ai meu Deus! Na índia falamos assim quando cometemos um êro, e parecer que cometi algum êro, não?
—Ahhhhhh, intão a sinhora é índia? Porisso qui tá falano tudo enrolado!
—Perdoa nós, mais é qui nós não saber falar su língua dirêtcho.
— Nóis perdôa a sinhora intão! Mais mim chama de Bastião memo. Faz favô de tira essa coisa isquisita de me chamá de sinhora. Ieu sô macho! Se lá na sua ardêia de índio, ocêis chama os hômi de sinhora é lá coces! Aqui na Canastra isso pega mal pá daná! Sabia qui minha bisavó Crimintina foi pegada no laço?
— Nossa! Que crime hedionda ela cometeu?
—Minha avó num é criminosa! E num é de onda não! Ela foi muié munto dereita... Braaaba quiném cascaver! Era índia, e de tanta brabeza tivéro qui laçar ela mode adomá.
—Baguan Keliê, sô Bastião, perdoa nós! Não querer ofender nhô... Nos só não saber direito conversar na su idioma.
— Perduada antão! Sei qui índio fala deferente. Mais mi conta, mode quê tá inrolada nessa panaiada de toda cor, quiném arara? Intonce índio num veve pelado no mato?
—Nôn. Nôn ser índia! Ser indiana da país da Índia e nô andar peladu. Essa ser rôpa normal nosso.
—Ahhh munto prazer dona índia Ana! Mais peraí... Ana num é nome de índia não!
—Nos saber se é, mas nome meu ser Deva Shakti, que querer dizer Divina Luz...
— Ahhh tava demora no!!! Vei fazê cobrança né? Fica sabeno qui num devo nadica procêis! A minha conta di luiz tá im dia e o valô qui a CEMIG ta cobrano num tem nada de divino não!
—Por Shyva... Non querer cobrar nada. Só vim apreciar a beleza da sua quintal, a beleza da serra. Nom vai cobrar apenas connoscer.
— Aqui nóis é humirde e só tem cachaça, serve? É custume docêis índio bebê bibida arcólica na hora que divia de tá bebeno um cafezim?
—Mas eu não pedir cachaça!
—Eu sei, eu sei a senhora quer uísque, mas isso é trem chique e caro. Nóis num tê! inda mais dessa qualidade, Chiva...
— Ah, desculpa, non falar de Whysk, falar de outra coisa...
—Ahhhh, deve de ter falado chuva né? É bem pareceu... Mas chuva nóis num vê faiz tempo! Num tem nadica de pranta brotano. A sinhora num vai vê nada nascê nessa sequidão.
—Chuva também non... Chiva... uma das deuses que adoramos. Na índia temos muitos deuses!
De repente a indiana vê uma vaca no pasto e sai correndo atrás do animal. Debaixo do sol quente, ajoelha-se interrompendo o percurso da vaca saudando-a:
—Namastê mãe-vaca!
— Chico do céu, a dona índia ficou doida! Tá ajuêiada na puêra do chão in frente da Mimosa, chamano ela de mãe!
Penalizada, a indiana retira da própria cabeça um véu de seda e cobre a cabeça da vaca, tentando conduzi-la até a sombra de uma árvore. Os dois caipiras assombrados não entendem nada do que vêm.
— Deve de sê o solão quente qui indoidô a moça, né primo?
A vaca se assusta com o pano jogado sobre si. Dispara em rumo ignorado deixando um rastro de poeira. Agradecida por ter tido a chance de saudar o animal sagrado, retorna à casa satisfeita.
—Finar de conta o qui é memo qui a dona índia tá quereno aqui nessas banda? Inté agora num tindi nadica de nada!
—Eu querer olhar as passarinhos, o Serra du Canastra, os rio, as beleza dessa terra. É que vi como é bonitinho esse canta do sua paíz e vim conoscer... Queria saber se o sinnhô podia me mostrar uma pouca dessas belezas.
— Só isso? Eu mostro os passarin pra sinhora... Eu mostro tudo! Que passarin a senhora quê vê?
Feliz ela exclama:
— Atcha! Tik tik, Bastião!
—E adonde qui a sinhora acha que vô acha um tico-tico no meio do mato numa hora dessas? Pensa que é só saí e vê um bando de tico-tico nesse mundaréu de serra? Se tivé sorte, a gente esbarra em argum por aí, mas num prometo nada não.
— Não ser necessariamente tico-tico. Tik tik, quer dizer “sim, sim”, mas eu querer ver aquela animal da bica grande.
—Mais tenho aqui é uma biquinha á toa, né grande coisa nenhuma! Lá tô avistano só as galinha bebeno água. A sinhora num vai mim dizê qui viajô dessa lonjura toda pra mode vim aqui pa vê galinha bebeno água na minha bica?
— Nom, nom! Nom querer dizer bica de água, eu querer dizer bica grande de animal que voa... Eu falar da tucana!
—Tucana é a muié do tucano! Mas é munto custoso sabê qualé dos dois é a fema.
— Por Shiva! É mais custoso? Nom saber qui pra ver a fêmea era mais caro. O nhô cobra quanto?
—Pa falá verdade nunca na minha vida ieu mainei que ia passá por isso. Ieu acho que amanhici cum pé esquerdo hoji. Intão joguei pedra numa cruiz.
—Ah, vocês tem um ritual de jogar pedra e levantar com a pé direito em certos dias e se enganou na dia de hoje é?
—Credoincruiz três vêiz!
Assoprou o ar dos pulmões já achando aquela mulher índia um pouco burra, mas dando graças a Deus por ela ter parado de chama-lo de senhora.
— Quero saber quanto o sinhor vai cobrar para mostrar os canárias, as macacos, os siriemas, os queda d’água... Quero ver o serra inteira! Quero trazer um lotação de gente como eu. Trazer para a sua serra, muito indiana!
—Misericórdia! Vai trazé a indiarada tudo! Pajé cacique e inté as oca!
Nessa hora, o taxista Chico, que ouvia a conversa, não se conteve:
—Vixe, Bastião... imagina um montão de índia doida qui nem essa daí, aqui na sua casa? falano inrolado ajueiano nos pé das suas vaca pra chamá de mãe?
—Deusulivre, Chico! Num é qui é mermo?
Se virando pra mulher pergunta:
—ô dona índia, de quantas pessoas ocê tá carculano qui vai trazê pra cá?
— Uns 40, um lotação de ônibus!
—Credo! Chamando o Chico a um canto da casa ele combina aos cochichos.
— Chico, ocê qué quanto pra ocê pegá essa doida dessa índia e sortá no pé da serra bem longe daqui?
—Tá doido primo? Vai fazer essa disfeita ca visita?
— Qui disfeita qui nada! Lá ela vai vê tudo qui ela qué vê. As cachuêra, passarim de bico de tudo quanté tamanho, as parente vaca dela, a serra, as sariema...
—Tá certo! Mas e adispois?
—Adispois do quê?
— Uai, de sortá ela lá no mato!
—Ela num é índia? Ela vai tá in casa no meio do mato cas bicharada. Pode inté ficá pelada que nem os índio. Pode amontá pur lá a ardêia cos restos da indiarada que ela vai trazê de mudança prá cá.
—Sei não, primo...
—Ieu sei é qui num quero esse povaréu de língua imbolada na minha casa. Tamém num quero ninguém tampano o focinho das minhas vaca cum pano.
Alguns minutos mais tarde lá ia o táxi do Chico virando para onde um dedo de uma mulher extravagante lhe apontava toda sorrisos e felicidades.
Ia para bem longe em direção a um canto isolado da serra. Antes de abandonar a mulher perto da Cachoeira do Fundão, Chico ainda pensou com a consciência limpa:
—É, o Bastião tinha toda razão, essa índia vai si sinti im casa aqui no mei do mato... É só ispiá a cara de aligria dela!
E partiu todo satisfeito com a sua boa ação, deixando Deva Shikt para trás, fotografando de tudo, no meio do seu hábitat natural de índia.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Namastê
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