Pegou a estrada no fim de semana para espraiar um pouco a cabeça cheia de problemas. Não tinha endereço certo e seguiu apenas o impulso que  recomendava que mudasse de ares, nem que fosse apenas por algumas horas, o suficiente que o permitisse desestressar um pouco. A sua rotina de vida era enervante e quase sempre desencadeava pensamentos descontrolados que complicavam mais as coisas. E mesmo sabendo que seria uma solução meramente paliativa, foi em frente para ver no que ia dar. O que lhe custaria?
  
O seu carro, por ser muito confortável e rápido, fez que se sentisse muito importante enquanto dirigia, e proporcionasse uma sensação de potência e liberdade, e ao mesmo tempo permitia que vivesse puro êxtase existencial que apagasse da mente as incongruências da vida nas grande cidades. Mesmo porquê, o contato com a natureza atuaria como um bálsamo e uma espécie de volta ao passado, mais precisamente ao tempo em que morara em diversas cidades do interior por força de suas atribuições regimentais, e que lhe despertara agradáveis sensações adormecidas há anos. 

Nem o ar condicionado ligou, apesar do calor de verão. Queria sentir o vento e o sol batendo no rosto através da janela aberta e aspirar o odor dos campos verdejantes à sua volta. Nessa hora, gostaria que o veículo fosse conversível, como nos bons tempos. Mas, alguém em seu juízo perfeito teria coragem hoje em dia de andar nas ruas com um carro com o exterior totalmente exposto? No primeiro sinal que parasse tirariam tudo que nele estivesse dando sopa, e sobraria somente a roupa de baixo, se estivesse num dia de sorte. Na verdade, não se lembrava de ter visto nenhum assim nos últimos vinte e cinco anos, pelo menos.

Que tristeza! O cidadão perdera a liberdade de possuir o bem de seu agrado, com receio de chamar a atenção dos amigos do alheio que proliferavam como ratos nas galerias de esgoto da vida nos grandes centros populacionais.
  
Dirigiu aproximadamente por três horas sem parar, nem mesmo para ir ao banheiro, esquecendo totalmente que depois de algum tempo o organismo exige a observância rigorosa desse importante detalhe fisiológico. 

Era como se não estivesse mais em seu corpo, mas apenas vagando pelo loucos campos da imaginação, em que tudo era perfeito e funcionava como um relógio suíço, enquanto aspirava o cheirinho de mato que lhe invadia as narinas atrevidamente e inebriava o seu ser com o delicioso néctar da natureza; explodindo à sua volta com matizes variados que se alternavam continuamente e ofereciam ao seu olhar uma visão prévia do Éden.
  
Por fim, estacionou diante um vale imenso cercado de altas montanhas que exibiam uma cor azulada, sob os efeitos da luz refletida do astro-rei, enquanto nuvens fugidias acariciavam os seus flancos suavemente ao sabor de uma brisa que, aparentemente, oferecia pleno movimento àquele quadro surreal, permitindo que explodisse em pujança e grandiosidade, enquanto as aves planavam ao redor e preenchiam os vazios existentes com formas e cores espetaculares, que lhes acariciavam os ouvidos com os sons que emitiam em uníssono. 
 
   Ainda que a noite chegasse com o pesado manto e o encobrisse gradativamente com o seu matiz cinza escuro, não conseguiu tirar a sua beleza em razão das luzes das estrelas, que o clarificavam com cores azuladas, como se fossem milhões de pirilampos valsando ao som de fundo proveniente do imenso universo. 

Nesse momento indescritível, ainda recheado de ruídos e imagens deslumbrantes, deixou-se quedar  absorto em pensamentos profundos diante da beleza que se descortinava, sendo aos poucos, sem que o percebesse, engolfado pelo abraço imaginário desse ambiente acolhedor que acabou por relaxar o seu espírito agora reconfortado.
 
O amanhecer o surpreendeu deitado em verdes pastos e cercado de ovelhas que, em bandos, circulavam à sua volta como se ele fizesse parte permanente daquele cenário bucólico e de uma terna quietude. Foi quando percebeu que, mesmo diante das incertezas existentes num mundo conturbado pela desenfreada corrida em busca de si mesmo, ainda existem lugares em que a sensibilidade humana encontra a reciclagem para a sua alma sequiosa de desfrutar dos antigos valores que nortearam antigas gerações.
  

 
Cronista
Enviado por Cronista em 07/09/2014
Reeditado em 09/10/2014
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